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Quando a esmola é demais, o santo desconfia



Num "centro espírita", uma palestrante fica muito exaltada quando vê a contabilidade e nota que sua instituição recebeu uma considerável quantidade de doações em mantimentos e outros objetos, além da grana dos carnês e de outros donativos financeiros atingir a meta esperada.

"Vejam só! O pão dos pobrezinhos, a casa dos desabrigados e o remédio dos doentes está garantida! Graças a Deus! Vocês contribuíram para essa caridade e é uma ótima notícia que nós damos aqui no nosso centro! Deus os abençoe! Que Cristo Jesus lhes ilumine!", diz a senhora, em tom dramático e aparentemente comovida.

Enquanto isso, nos bastidores do "espiritismo", um palestrante é perguntado por um interlocutor qualquer se é intenção daquele em alcançar o Céu, com seus livros e palestras que mostram os chamados "ensinamentos cristãos". Diz então o palestrante "espírita":

- Meu amigo, pouco me importa alcançar o Céu, agora. Quando me disseram que eu teria muito serviço a fazer nas próximas encarnações, me enchi de entusiasmo. O que eu mais quero é ir para um lugar miserável, tipo Bangladesh, e ser missionário e cuidar dos pobrezinhos com fome.

Desconfiemos dessas declarações. Elas representam um ditado popular muito conhecido: "Quando a esmola é muita ou demais, o santo desconfia". É um entusiasmo muito exagerado, até mesmo para os padrões de generosidade humana, onde mesmo a caridade mais obstinada não inspira sentimentos de tamanha euforia.

Vendo que o "espiritismo" brasileiro, que traiu os ensinamentos de Allan Kardec em prol do igrejismo medieval de Francisco Cândido Xavier, demonstra inúmeras irregularidades, que o eufemismo que a falácia de que "todo mundo erra" tenta abafar sua gravidade, notamos que existem interesses suspeitos, ainda que somente de promoção pessoal, por trás dessa "caridade festiva".

Primeiro, porque ela envolve vaidades pessoais em relação ao prestígio religioso. Há uma presunção hipócrita em pessoas que vivem de relativo conforto em parecerem arremedos de Jesus de Nazaré, e dessa maneira usarem de falsa modéstia para esconder seu orgulho. "Eu não quero o Céu, não tenho pressa em ficar ao lado de Deus, quero mais é ficar ao lado dos pobrezinhos, dar comida aos famintos, dar um lar aos desabrigados".

Segundo, não há garantia se essa "generosidade sem limites" é verdadeira. Instituições "espíritas" podem atuar com superfaturamento de verbas públicas solicitadas aos governantes. Palestrantes viajam em bons aviões, se hospedam em bons hotéis, lançam livros que soam como arremedos de auto-ajuda que nem trazem tanta sabedoria assim, e, apesar de todo apelo de que as vendas dos livros são "para a caridade", eles garantem a riqueza e a vida semi-luxuosa de seus escritores.

Terceiro, nem Chico Xavier praticou caridade. Nenhum "espírita" a fez, de fato. O que eles faziam é pedir aos outros para colaborar com atividades que vão da doação de mantimentos e outros objetos ao trabalho voluntário de produzir sopas. É constrangedor que os palestrantes e/ou "médiuns" do "espiritismo" brasileiro se autopromovam com a caridade de terceiros, que, além disso, não vai além das ações de resultados fajutos porém espetacularizados do Assistencialismo.

Não é própria da natureza humana a euforia em torno de ações filantrópicas. Há naturezas específicas de comportamento e a verdadeira filantropia não se faz com euforia, com a alegria de quem vai para um parque de diversões. Até porque isso faz com que a ação filantrópica seja ridicularizada, além de se tornar um artifício para dissimular ambições e vaidades pessoais nada generosas.

A verdadeira filantropia é apenas uma ação sem alarde, que é divulgada quando é necessário, mas que dispensa o exibicionismo. É uma ação na qual o benfeitor tem que fazer a sua parte, em vez de pedir aos outros para fazer e, depois, ser adorado como uma cigarra se promovendo com o trabalho das formigas.

Diante do "espiritismo" igrejeiro e medieval que existe no Brasil, infelizmente a caridade é muito bajulada e alardeada, mas quase nunca praticada, ainda mais se considerarmos a "omissão de socorro" que são suas pregações moralistas para forçar os sofredores a "aceitar sua desgraça". E aí entra também um outro ditado sobre a "caridade" alardeada: "Quem muito diz que é, é porque não é".

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