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Espiritismo, no Brasil, é repaginação do Catolicismo medieval


O VERDADEIRO EMMANUEL.

Diferente do que ocorreu no Espiritismo original, codificado na França por Hippolyte Leon Denizard Rivail, o Allan Kardec, o que se conhece como "espiritismo" aqui não olhou para a frente, impulsionado pelos ventos do Iluminismo, mas olhou para trás, buscando repaginar e reciclar as heranças religiosas do Catolicismo jesuíta que prevaleceu no Brasil colonial e que possuiu bases medievais.

Essas bases medievais vinham de Portugal, que em plena época moderna ainda fazia inquisições e queimadas em praça pública. Praticamente o medievalismo português foi eliminado pela natureza, pois em 1755 um violento terremoto seguido de intenso maremoto causaram estragos incontáveis no país europeu, causando milhares de mortes e destruindo prédios e casas além de fazer perder, para sempre, documentos preciosos, como os relatos das viagens do navegador Vasco da Gama.

Foi depois desse trágico incidente é que o primeiro-ministro português, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês do Pombal, decidiu estabelecer um corte rígido de gastos do tesouro português. Com isso, ele cancelou vários investimentos na sua maior colônia, o Brasil, e mandou os membros da Companhia de Jesus, os missionários jesuítas, de volta para casa.

A essas alturas, os mais famosos padres jesuítas da História do Brasil, José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, haviam falecido, pois eles viveram no século XVI e a essas alturas a ordem de saída da Companhia de Jesus na colônia americana foi dada dois séculos depois.

Talvez os espíritos desencarnados não tenham gostado do cancelamento das atividades da Companhia de Jesus, e as energias foram trabalhadas para que os jesuítas falecidos embarcassem numa novidade assimilada de maneira confusa pelos brasileiros, o Espiritismo.

Como é de praxe, o Brasil, quando assimila uma novidade, mistura alhos com bugalhos. Assimila, parcialmente, o legado dos pioneiros, mas também acolhe os pastiches dos canastrões. Na Jovem Guarda, por exemplo, se acolheu tanto o rock'n'roll autêntico de Elvis Presley, Bill Haley e Little Richard quanto canastrões como Pat Boone e Ricky Nelson.

O Espiritismo foi acolhido no Brasil de maneira seletiva e, ainda assim, concorrente. Aqui chegaram quase que ao mesmo tempo as obras de Allan Kardec e o livro Os Quatro Evangelhos, que o deturpador Jean-Baptiste Roustaing atribuiu aos quatro evangelistas, no primeiro pastiche que, supostamente psicografado por Emile Collignon, se atribuiu ao Marcos, Mateus, Lucas e João.

Dizem que Emile Collignon, considerada médium respeitável, pode ter psicografado os livros, mas os espíritos que se passaram por evangelistas teriam sido traiçoeiros, inserindo ideias medievais que, possivelmente, não fariam parte do pensamento dos quatro principais autores do Novo Testamento, pois, no seu estágio evolutivo, até mesmo formas conservadoras de crença cristã lhes teriam sido abandonadas. Mas há fontes que desconfiam que ela apenas agiu como "secretária" de Roustaing para a elaboração deste livro.

Diante disso, o cientificismo de Allan Kardec, que continua pontos muito incômodos para o padrão religioso dos brasileiros, foi apenas parcialmente acolhido, enquanto se assimilavam valores católicos para amenizar um pouco o impacto da obra kardeciana. E isso só beneficiou por uma época, fazendo com que o "movimento espírita" buscasse a proteção da Igreja Católica contra a repressão policial que havia nas "casas espíritas".

Mas, com o tempo, a "catolicização" do Espiritismo só serviu para transformar a doutrina brasileira numa farra para enriquecer lideranças e promover idolatria religiosa aos seus sacerdotes, os "médiuns", que se impunham como pretensos oráculos pela suposição de "falarem com os mortos".

Só que a "catolicização" tornou-se popular porque um envolvido em fraudes literárias, chamado Francisco Cândido Xavier, começou sua carreira arrivista de sucesso, através das manobras de Antônio Wantuil de Freitas, que anteciparam a blindagem que o "médium", popularmente conhecido como Chico Xavier, passou a ter através de um método importado do inglês Malcolm Muggeridge, o "fabricante de santos".

Chico Xavier, que hoje é conhecido pela imagem adocicada de sua pessoa, com uma biografia "higienizada" pelo âmbito da fantasia e do pensamento desejoso que o fazem um pretenso símbolo de caridade, paz e dedicação ao próximo, ampliou e levou às últimas consequências a deturpação que o "movimento espírita" fez do legado de Allan Kardec desde antes da fundação da Federação Espírita Brasileira, em 1884.

Através de Chico Xavier, as ideias de Roustaing se propagaram de tal forma que o próprio nome do autor de Os Quatro Evangelhos pôde ser descartado, pois o conteúdo do livro seria redistribuído, sem os pontos polêmicos da "reencarnação de humanos para corpos animais, vegetais ou em insetos ou micróbios" e do "Jesus fluídico" (tese que atribui a vida de Jesus a uma aparição "fantasmagórica" e não carnal), nos mais de 400 livros que levam o nome do "médium" de Pedro Leopoldo.

Foi Chico Xavier que desviou por definitivo a rota do Espiritismo, evitando o caminho para a frente por inspiração do legado francês e passou a percorrer o caminho para trás, com base nas "tradições da religiosidade brasileira", ideia tida como "profundamente saudável", mas é leviana, por se tornar um eufemismo para a herança do Catolicismo jesuíta, de essência medieval.

A herança jesuíta ocorreu de tal forma que o antigo padre Manuel da Nóbrega passou a ser evocado como um dos "maiores mensageiros espíritas" do Brasil, Emmanuel, o que diz muito na "catolicização" que o "espiritismo" brasileiro não adotou por acidente nem por "entusiasmo demais pelas origens cristãs" e muito menos pelas "afinidades com os ensinamentos de Jesus".

A deturpação do Espiritismo, no Brasil, foi algo bastante cruel e fez com que o "espiritismo" brasileiro, apesar da fama de "religião mais honesta e altruísta do Brasil", tivesse uma desonestidade doutrinária que a faz pior até do que a pior das seitas neopentecostais, como são chamadas certas correntes reacionárias e gananciosas da religião evangélica.

O mais grave é que a "catolicização" sobrevive até mesmo diante da promessa e da suposição de "recuperação de bases doutrinárias". Enquanto muitos oportunistas do "espiritismo" brasileiro falam que "Espiritismo só existe um, e é o de Kardec", eles praticam o igrejismo roustanguista e endeusam Chico Xavier.

Isso revela o quanto ideias como "humildade", "fraternidade", "paz", "caridade" e "simplicidade" servem de máscaras para a hipocrisia que traz um diferencial negativo ao "espiritismo" brasileiro, no qual uma gororoba de conceitos que mistura alhos com bugalhos, mesclando espiritismo autêntico com igrejismo obscurantista, prevalece num país de gente desinformada como o Brasil, que pensa que o que se conhece aqui como "espiritismo" é um "paraíso de beleza, limpidez e honestidade".

Para desespero de muitos, que fogem de medo dos textos esclarecedores, preferindo ler as fantasias piegas de Violetas na Janela do que encarar revelações sobre a deturpação do Espiritismo, a verdade dolorosa é que o legado original do Espiritismo se rebaixou, no Brasil, a uma forma repaginada do Catolicismo medieval português que prevaleceu no período colonial e que, evocando Emmanuel, voltou sob outro rótulo, mas com a mesma influência dos antigos jesuítas medievais.

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