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Mercado literário é refém dos "espíritas"



Por que o mercado literário, no Brasil, é decadente? Por que os brasileiros não costumam ter um hábito regular e proveitoso de leitura? É porque no nosso país a tradição conservadora prima pelo anti-intelectualismo e nossa "cultura" sempre exige uma literatura mais analgésica e anestésica, feita para mero entretenimento e que serve de fusca, e não de busca, do Conhecimento, a não ser para fins meramente pragmáticos como concursos públicos, por exemplo.

O "espiritismo" brasileiro é uma religião de pedantes intelectuais. Desde seus primórdios, seus integrantes agiam como se fossem arremedos da Academia Brasileira de Letras, e isso se deixava claro até nas fotos de vários de seus dirigentes reunidos e nas pompas que eles realizaram nas suas cerimônias de lançamentos de livros, coquetéis, seminários etc.

Talvez isso possa explicar que Francisco Cândido Xavier tornou-se uma figura exata para usurpar o prestígio da ABL diante de uma classe de literatos frustrados que se tornou a "Federação Espírita Brasileira".

Chico Xavier veio com um livro muito estranho, chamado Parnaso de Além-Túmulo, de 1932, que de maneira evidente e confirmada se revela um grande embuste literário, pelos seguintes motivos:

1) Prometia, de uma só vez, a reunião de várias personalidades literárias já falecidas, de diversas procedências, que divulgariam poemas espiritualistas inéditos ditados do mundo espiritual, o que é bom demais para ser verdade;

2) Os poemas e prosas contidos no livro Parnaso de Além-Túmulo, além da estranha façanha de reunir vários espíritos de diferentes lugares - mal conseguimos realizar reuniões de colegas da infância, vamos pegar escritores do além como se fosse escolher comida num restaurante a quilo? - , possuem qualidade bem abaixo do que realmente era o talento dos autores atribuídos;

3) O livro sofreu remendos editoriais ao longo do tempo, e cinco vezes: 1935, 1939, 1944, 1945 e 1955. Poemas foram excluídos e outros, somados, conforme as conveniências do momento. Outros tiveram conteúdo levemente alterado, com pequenas alterações em versos;

4) Alguns poemas mais parecem paródias relacionadas aos autores atribuídos. como Castro Alves, Casimiro de Abreu e Cruz e Souza. Outros têm o estilo original completamente desaparecido, como Olavo Bilac e Auta de Souza. E houve confusões de paródias, envolvendo o português Antero de Quental e o brasileiro Augusto dos Anjos.

DENÚNCIAS DE FRAUDES SÃO CONSISTENTES E COM PROVAS

O que mais surpreende é que as denúncias de irregularidades contra Parnaso de Além-Túmulo são consistentes, para desespero dos seguidores de Chico Xavier, e possuem fartas provas de fraudes, inclusive pondo por terra o fato de que o "médium" fazia tudo sozinho, uma falácia que permitia uma espécie de "autenticação de cima do muro".

Essa "autenticação de cima do muro", baseada na tese do "trabalho solitário" de Chico Xavier (ele só teria, segundo essa tese, "colaboradores" do mundo espiritual), buscava promover a seguinte pegadinha. Se o trabalho de Chico Xavier era fraudulento, ele era um "gênio", capaz de assimilar os mais diversos estilos literários mesmo tendo baixa escolaridade. Se o trabalho de Chico Xavier era verdadeiro, então ele era porta-voz dos maiores nomes de nossa literatura.

Isso era horrível e fazia do arrivista Chico Xavier alguém alçado para a idolatria, numa manobra sensacionalista tramada pelo seu descobridor, o presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, que deve ter sido um intelectual frustrado, talvez um aspirante a "imortal" da Academia Brasileira de Letras que não conseguiu assento nesta instituição.

Mas a tese de que Chico Xavier tinha colaboradores, sim, mas eles estavam mesmo era na Terra, é confirmada por duas provas, trazidas por publicações "espíritas", portanto, o que desespera os adeptos do "médium" é que essas confirmações não vêm de gente hostil à sua pessoa, mas de gente solidária que, por acidente, deixou a farsa ser desmascarada e que se ela não foi oficialmente reconhecida, é porque interesses em jogo impediram esse reconhecimento.

Uma das provas veio numa esquecida matéria do periódico "espírita" mineiro, O Poder, de 10 de maio de 1953, que revelou que Manuel Quintão, ex-presidente da FEB, participava da revisão dos livros "psicográficos" de Chico Xavier. Segue um diálogo envolvendo Wantuil de Freitas e um membro da FEB, Sousa do Prado (pseudônimo de José de Sales de Sousa Ribeiro), depois desligado da instituição:

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Um dia, o Sr. Vantuil de Freitas — já depois de ter conseguido escalar a presidência da Federação — chamou- nos, muito interessado; precisava muito de falar conosco, particularmente. Tinha, na mão, um maço de provas tipográficas.
— Mas você não me comprometa, Sousa do Prado.
— Não — dissemos nós.
— Você sabe que quem corrige todos os trabalhos recebidos pelo Chico Xavier é o Quintão.
— Sei — respondemos. — Por sinal que, com tais correções, consegue desfigurar quase completamente o estilo dos espíritos que ditam as obras ao médium, enxertando-lhes termos esdrúxulos, que eles nunca usaram enquanto encarnados...
— Pois bem; foi ele, portanto, quem corrigiu os originais e as provas de “Nosso Lar”, que vai ser, agora, novamente publicado.
Em parênteses, esclareceremos que não temos bem a certeza se se tratava dêste trabalho ou de “Brasil Coração do Mundo Pátria do Evangelho”...
— Ora, como você sabe — continuou ele — o Quintão erra constantemente, principalmente no emprego da crase, e na pontuação; e eu tenho um grande empenho em que isto saia correto. Por isso, fiz uma nova revisão, emendando os principais erros que encontrei. Como, porém, eu sou um pouco fraco no português, ... e posso ter emendado coisas que estivessem certas, queria que você conferisse, comigo, as emendas que fiz...
... Haviam, nelas, emendas indispensáveis, que tinham escapado ao Quintão, mas, em compensação, o ilustre “Dr.” Freitas... errara muita coisa, que estava certa...
E aí têm os leitores o que valem certas “comunicações” e certos “dirigentes” do Espiritismo brasileiro.

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Outro "fogo amigo" se deu quando na publicação das cartas de Chico Xavier, no livro Testemunhos de Chico Xavier, pela "médium", escritora e amiga do homenageado, Suely Caldas Schubert, que lançou a brochura em 1981. Por acidente, ela revela uma carta de 03 de maio de 1947, que Chico escreveu a Wantuil, agradecendo a ele e a outro membro da FEB, Luís da Costa Porto Carreiro Neto, pela revisão dos originais para a sexta edição de Parnaso de Além-Túmulo:

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"Grato pelos teus apontamentos alusivos ao “Parnaso” para a próxima edição. Faltam-me competência e possibilidade para cooperar numa revisão meticulosa, motivo pelo qual o teu propósito de fazer esse trabalho com a colaboração do nosso estimado Dr. Porto Carreiro é uma iniciativa feliz. Na ocasião em que o serviço estiver pronto, se puderes me proporcionar a “vista ligeira” de um volume corrigido, ficarei muito contente, pois isso dará oportunidade de ouvir os
Amigos Espirituais, em algum ponto de maior ou menor dúvida. Há uma poesia, sobre a qual sempre pedi socorro, mas continua imperfeita desde a primeira edição. É aquela “Aves e Anjos” (...). Ela termina assim: “Sorrindo... Cantando...” e não “Sorrindo... Sorrindo...”, como vem sendo impresso".

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Embora em ambos os textos se fale da tarefa de Chico Xavier "recorrer aos amigos espirituais", isso pode ser uma mentira combinada pessoalmente entre ele e Wantuil, e, cá para nós, é muitíssimo estranho que obras tidas como "espirituais", que supomos que devam vir em versões acabadas que dispensassem revisão - pois, em tese, elas vêm de espíritos mais intuitivos e evoluídos, que teriam um talento ampliado no mundo espiritual - , tenham que sofrer revisões tão sucessivas.

Outro episódio que causou problemas no meio literário envolveu o escritor Humberto de Campos, que fez uma resenha de duas partes no Diário Carioca, de 10 e 12 de julho de 1932, no qual parece fingir, num recurso irônico, "reconhecer" as semelhanças dos estilos dos poemas "mediúnicos" com o que os escritores alegados haviam deixado para nós, em vida. Mas Humberto segue, na primeira parte do artigo, com uma cobrança que deve ter irritado Chico Xavier:

"Por enquanto eu quero, apenas, pôr de sobreaviso os poetas vivos contra o perigo que a todos nos ameaça com a ideia que tiveram os mortos de voltar a escrever neste mundo em boa hora abandonado por eles. Se eles voltam a nos fazer concorrência com os seus versos perante o público e, sobretudo, perante os editores, dispensando-lhes o pagamento de direitos autorais, que destino terão os vivos que lutam, hoje, com tantas e tão poderosas dificuldades?

Quebre pois cada espírito a sua lira na tábua do caixão em que deixou o corpo. Ou, então, encarna-se outra vez, e venha fazer a concorrência aqui em cima da terra, com o feijão e o arroz pela hora da vida.

Do contrário, não vale".

Pouco tempo depois, Humberto de Campos caiu doente e só conseguiu completar o primeiro volume de sua biografia. Ele morreu com apenas 48 anos, em 06 de dezembro de 1934, e o volume incompleto se transformou no livro Memórias Inacabadas, publicado até onde foi escrito.

Em 1935, o matreiro "médium" resolveu inventar um sonho que teve no qual um suposto espírito de Humberto, se destacando de uma multidão, cumprimentou Chico Xavier e perguntou: "Você é o menino do Parnaso? É um grande prazer, sou Humberto de Campos", teria dito o escritor no suposto sonho, que serviu de pretexto para Chico e Wantuil usarem o nome dele para uma série de livros.

A façanha promoveu sensacionalismo e revoltou o meio literário. Ninguém considerou as obras autênticas. Apenas inicialmente, um iludido Agrippino Grieco acreditou na semelhança da obra "psicográfica" com a original, mas depois, esclarecido em conversas com o jornalista investigativo Attila Paes Barreto, que em 1944 publicou o seminal (mas, infelizmente, esquecido e fora de catálogo) O Enigma Chico Xavier Trazido à Clara Luz do Dia, reviu suas impressões.

Outros escritores, como Monteiro Lobato, R. Magalhães Júnior e até Apparicio Torelly, o Barão de Itararé, se abstiveram de considerar se as "psicografias" eram fraude ou não. Eles demonstraram neutralidade, mas, como numa dessas manobras da esperteza, a FEB os usou para, supostamente, "confirmar a veracidade psicográfica" de Chico Xavier, algo bastante leviano e sem um pingo de lógica.

Afinal, diz a semiologia ou mesmo a mais simples lógica da linguagem humana que não dizer "não" não significa necessariamente dizer "sim". Desmentir uma fraude não necessariamente define uma obra como autêntica, pois há pessoas que possuem dúvidas nos dois lados, o da fraude e o da autenticidade.

A verdade é que ninguém definiu as "psicografias literárias" de Chico Xavier como "autênticas". E o caso Humberto de Campos resultou em um processo judicial movido pelos herdeiros em 1944, com Milton Barbosa como advogado e com a viúva do escritor, dona Catarina Vergolino de Campos.

O processo judicial deu em nada, porque a habitual seletividade da Justiça brasileira - que hoje é capaz de inocentar políticos corruptos do PSDB e liberar a candidatura do hoje presidente Jair Bolsonaro, apesar de vários processos judiciais contra ele - , no caso na pessoa do juiz suplente da 8ª Vara Criminal do Distrito Federal (então no Rio de Janeiro), João Frederico Mourão Russell, achou o processo judicial "improcedente" e deu impunidade a Chico Xavier e a FEB.

Com isso o caminho foi aberto para Chico Xavier fazer o que quiser com os mortos, se promovendo às custas da tragédia alheia. E, em 1957, já com dona Catarina falecida, Chico armou um espetáculo para seduzir o homônimo filho do escritor, Humberto de Campos Filho, jornalista, diretor e produtor de TV (existe uma foto dele ao lado de Hebe Camargo), com reunião doutrinária e amostras de Assistencialismo no "Grupo Espírita da Prece" e uma caravana, ambos em Uberaba, Minas Gerais.

Humberto Filho foi vítima de assédio moral de caráter religioso, embora oficialmente esse triste episódio seja reconhecido como "episódio de perdão e confraternização". Na verdade, a ação do "médium" em seduzir o filho do autor maranhense (que escreveu o deslumbrado Irmão X, Meu Pai, em 1997) foi para evitar que novas ações judiciais atingissem Chico Xavier. Foi uma ação de esperteza e não de "perdão, misericórdia e compreensão fraterna".

E isso abriu precedente para tantas usurpações literárias, além do caso paralelo de Nosso Lar, atribuído ao fictício espírito de André Luiz - atribuído de forma confusa e divergente a diversos médicos brasileiros - , de 1943, que explorou o esquecido mercado de folhetins literários, substituídos pelas radionovelas.

Daí, tudo se transformou numa farra. Entre livros ficcionais de supostos nomes espirituais - geralmente apenas com prenomes greco-latinos como "Lucius", "Vinícius" etc - , repisando a narrativa de Nosso Lar, até obras "mediúnicas" usando nomes famosos, de Getúlio Vargas a Raul Seixas, narrando supostas realidades no mundo espiritual, criaram um vale-tudo editorial que transformou o "espiritismo" brasileiro numa indústria de literatura fake.

Com isso, a obra original de Humberto de Campos anda oficialmente fora de catálogo, para evitar o acesso ao público que, comparando esta obra com a "mediúnica", poderá reconhecer a farsa. Enquanto isso, o "movimento espírita" cria um lobby no mercado literário que se articula de tal forma que a FEB mantém sempre um lugar garantido nas várias bienais e feiras literárias de todo o país.

É lamentável que um mercado fraudulento tenha chegado a esse ponto, mas faz muito sentido. O mercado literário brasileiro é refém do "movimento espírita" porque o Brasil é um país de gente ao mesmo tempo desinformada de muitas coisas e vulnerável às paixões religiosas, para as quais uma mentira que apelasse para uma mensagem religiosa vale mais do que uma verdade contundente e realista. O canastrão Chico Xavier anda obsediando o cenário das letras no Brasil.

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