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A perigosa tese do "inimigo de si mesmo"



Um dos maiores cacoetes do moralismo retrógrado que contamina o "espiritismo" brasileiro é a falácia do "inimigo de si mesmo". Trazida por inspiração de correntes menos evoluídas do pensamento chinês, a ideia de "combater o inimigo de si mesmo" peca por transformar a existência humana numa espécie de "batalha".

A ideia é punitivista, e nem de longe traduz a necessidade do progresso humano. Ela é um desvirtuamento do sentido de abandonar a acomodação e a zona do conforto, e soa bastante cruel pelo seu enunciado, mesmo que ele seja descrito como uma metáfora.

No moralismo "espírita", aliás, há uma grande confusão de sentidos literais com metáforas. O que um pregador "espírita" diz de maneira taxativa ele depois recua, tentando convencer que "não era bem aquilo que ele quis dizer". É até gozado ver esses pregadores desmentindo ao que eles mesmo disseram na véspera. Para uma religião que deturpou Allan Kardec, faz sentido dizer e desdizer.

A ideia do "inimigo de si mesmo", que fez um suposto "médium", o também radialista Nelson de Moraes, botar levianamente no crédito de Raul Seixas (muito mal disfarçado no nome usado pelo "médium", Zílio, para uso externo às "casas espíritas"), ignorando que o falecido roqueiro baiano nunca defenderia aberrações como esta, é um conceito bastante perigoso.

Afinal, o "espiritismo" brasileiro diz rejeitar a ideia de suicídio. Mas seu moralismo é punitivista - herança de Jean-Baptiste Roustaing, depois adaptada pelo "médium" Francisco Cândido Xavier - , e define as vítimas do sofrimento humano como "culpadas" pela própria desgraça. É aquela coisa: "fulano sofre porque pagou por merecer", embora esse discurso seja dissimulado por uma linguagem mais suave, quase paternal.

E aí, o que temos? Temos o "espiritismo" brasileiro defendendo, através de Chico Xavier, a Teologia do Sofrimento (corrente do Catolicismo medieval) e através dela, se pede para os sofredores aceitarem suas desgraças sem reclamar da vida. Alguns pregadores chegam a dizer para os sofredores "amarem o infortúnio como quem ama uma mulher".

Mas como nem todo mundo é faquir para dormir feliz numa cama de pregos, a maioria esmagadora dos sofredores extremos só faz piorar sua situação diante da resignação com as desgraças sem limites. Devemos lembrar que, do contrário que muitos imaginam, só raramente o sofrimento extremo produz pessoas melhores e geniais, pois a maioria dos sofredores extremos resulta em tiranos, ladrões, assassinos, trapaceiros, falsários e vingadores de toda espécie.

E, diante da agonia extrema, o "espiritismo" brasileiro cai em contradição: ao reprovar o suicídio, mas apelando ao sofredor a aceitar as condições adversas que impulsionam esse ato extremo, a religião entra num impasse que só se agrava quando se fala em "combater o inimigo de si mesmo".

Pois é aí que o sofredor extremo, que em primeiro momento é desaconselhado a se suicidar, ouve a senha contrária. Já que o sofredor extremo é "inimigo de si mesmo", e ele é aconselhado a "combatê-lo", isso significa que, diante da agonia e da angústia em ter de suportar o insuportável, o infortunado acaba sendo estimulado a cometer suicídio. "Já que sou meu inimigo, então vou me matar porque isso não me faz diferença", pensará ele.

Não adianta os pregadores "espíritas" voltarem atrás, dizerem que o que falaram foi uma metáfora, tentarem explicar as coisas depois do desastre cometido, à maneira que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, tentou desmentir algum golpismo quando disse que "a democracia só existe se as Forças Armadas quiserem".

A ideia do "inimigo de si mesmo" é perigosa, porque não estimula o fortalecimento da auto-estima. O ideal não é falarmos em "combater os inimigos em nós mesmos", porque isso não traz qualquer diferença diante do sofrimento extremo. E, além disso, o "espiritismo" brasileiro, ao falar no "inimigo de si mesmo", está na verdade combatendo a individualidade humana e ignorando as necessidades particulares que as pessoas não conseguem atender em suas vidas com tantas desgraças.

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