Parece lindo quando estórias de moral religiosa falam de pessoas que enfrentaram uma avalanche de desgraças, humilhações, ameaças e tragédias e, depois, sobrevive com algum relativo benefício, dentro daquilo que muitos consideram ser "estórias de fé, perseverança e superação".
O "espiritismo" brasileiro se apoia nessas estórias e boa parte da sociedade brasileira acha lindo ouvir tais dramas humanos, sob a desculpa de se alegrarem com a superação dos outros. No entanto, mal conseguem saber essas pessoas da sua própria hipocrisia e falta de humanismo.
A postura é totalmente desumana. Sem que as pessoas que adotam essas posturas saibam, elas estão se divertindo com o sofrimento dos outros. A constatação lhes choca, as pessoas reagem dizendo que só estão "admirando grandes exemplos humanos". Mas embora as pessoas digam que "não importa o sofrimento, importa é que a pessoa hoje está feliz", a ideia oculta é inversa: "não importa se a pessoa está feliz, o que importa é que ela alcançou isso pelo sofrimento".
Os brasileiros são muito medievais. E isso parece chocante, afinal o Brasil consome tecnologia relativamente avançada, está, pelo menos em tese, a par com as novidades internacionais, mantém contato com o mundo e adota uma estética que parece ultramoderna, futurista e arrojada.
Mas tudo isso é embalagem, teoria, fachada. Na prática, mesmo os jovens que parecem surfistas ou universitários, adotam um vocabulário arrojado, um comportamento rebelde e quase punk e um temperamento do tipo que não está aí para as consequências, são defensores de ideias retrógradas, que se confirmaram ao elegerem Jair Bolsonaro presidente da República.
Afinal, é um Brasil que, apesar de seu aparato de ultramodernidade, defende uma política autoritária trazida por militares, uma economia socialmente excludente feita por tecnocratas a serviço do capital financeiro, e defende um moralismo justiceiro com uma Bíblia (ou um livro de Chico Xavier) numa mão e um revólver em outra.
É esse o Brasil que adora ouvir estórias de pessoas que sofreram demais para descansar na bonança. E um prazer sádico está surpreendentemente escondido em mentes que parecem bondosas, mas que trazem esse ingrediente perverso, sem que essas próprias pessoas percebam. Sem saber, ferem os outros não necessariamente apunhalando-as pelas costas, mas apunhalando-as às cegas.
DESGRAÇAS E HUMILHAÇÕES
As pessoas que acumulam desgraças e humilhações na vida são vistas pela sociedade moralista com um certo sadismo. A natureza do sofrimento é desprezada, e quem não sofre acha maravilhoso ver o outro sofrer. Há uma grande hipocrisia na postura de admirar pessoas que atingem o sucesso pela via do sofrimento, quando se sabe que elas são tão "cristãs" quanto Pôncio Pilatos.
Só uns parênteses. O julgamento histórico de Jesus Cristo nunca existiu, foi uma invenção literária da Idade Média para tentar inocentar os políticos do Império Romano da condenação cristã. Afinal, quem inventou esse julgamento foi o próprio Catolicismo medieval introduzido pelo Império Romano. Além disso, a lógica política dos romanos não previa julgamentos demorados, mas condenação imediata a Jesus Cristo, acusado de fazer campanha contra o poder romano.
Os moralistas brasileiros, que se gabam de "serem corretos, embora sujeitos a erros na vida", adoram ver outras pessoas sofrendo desgraças. Fazem "lágrimas de crocodilo", falam "olha que coitadinho", mas nada fazem para combater ou questionar a desgraça alheia. Em muitos casos, pessoas que parecem direitas chegam a participar de práticas de bullying contra pessoas socialmente frágeis.
E o "espiritismo" brasileiro? Esse nem está aí para ter pena. Pelo contrário, chega a afirmar que o sofredor que mais se humilha é o "mais abençoado", acreditando no "quanto pior, melhor", no qual quanto mais a pessoa sofrer desgraças, humilhações, empecilhos e tragédias, mais receberá as prometidas "bênçãos futuras".
"As humilhações são frequentes? As ameaças não param de crescer? Sua vida está em risco? Não se preocupe, ah, que sorte a sua você ser humilhado e ameaçado pelo mundo, quando Deus lhe ama, lhe admira e lhe protege, e, na tragédia iminente, um manancial de bênçãos eternas lhe espera à sua frente", é o que dizem os moralistas do "espiritismo".
Quanto sadismo. E isso feito com palavras que soam dóceis, pois há muitas palavras traiçoeiras com um suave e digerível gosto de mel. E quão desgraçado é o moralista religioso que diz isso, tentando forçar a pessoa a aguentar desgraças sob o pretexto da fé.
Essa perversidade faz o "espiritismo" brasileiro se distanciar completamente dos ensinamentos espíritas originais, que nada têm a ver com o moralismo retrógrado de Francisco Cândido Xavier, um devoto da Teologia do Sofrimento medieval que não merece 1% da adoração que recebe, mesmo quando se admite "imperfeições" em sua pessoa. Seu moralismo retrógrado apresenta perversidades que são facilmente identificadas no simples apelo para se aguentar o sofrimento em silêncio e sem queixumes. Pura crueldade dissolvida em palavras melífluas.
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