Com o afastamento dos postulados espíritas originais, em troca de um igrejismo convicto, embora nem sempre assumido no discurso, o "espiritismo" brasileiro vive uma grande erosão doutrinária, reduzido a um arremedo de consultório emocional e distribuição de donativos trazidos por outras pessoas.
Sem poder convencer o público com "psicografias" de conteúdo duvidoso - recentemente foi publicada uma mensagem fake atribuída ao espírito do ator Domingos Montagner - e sem resolver as contradições entre seu igrejismo e os ensinamentos da Codificação, o "espiritismo" brasileiro sucumbiu à mesmice de suas próprias escolhas.
Dessa maneira, o "espiritismo" brasileiro se limita, hoje, aos apelos moralistas e religiosos de sempre - "mude-se a si mesmo", "acredite na vida", "ame a Deus" etc - , sem poder produzir algo digno da herança da Codificação, reduzindo a Doutrina dos Espíritos a um engodo mistificador sem qualquer serventia para a vida das pessoas.
Tudo virou um "conto de fadas para adultos". A ideia de produzir "gatas borralheiras" do mundo real, com suas "lindas estórias" de "fé e superação", sobretudo enfrentando desastres e tragédias, é trazida por palestras em "reuniões espíritas" - as chamadas "doutrinárias" - ou pelos chamados romances "espíritas", nem sempre "mediúnicos", mas comprometidos de toda forma a trazer lições morais condizentes com tal religião.
Há todo um jogo de discurso no qual se diz respeitar o legado deixado por Allan Kardec, mas na prática seus ensinamentos são traídos o tempo todo, da forma mais vergonhosa, cafajeste e deplorável possível. O igrejismo a que se reduziu o Espiritismo no Brasil é preocupante, mas o mais preocupante é a postura dotada da mais profunda hipocrisia que seus dirigentes e palestrantes adotam, muitas vezes levando gato por lebre.
A partir de Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier, a deturpação iniciada até antes da criação da "Federação Espírita Brasileira" (1884) se ampliou e atingiu níveis tão altos, que fazem as pessoas acharem isso natural. Poucas pessoas sabem realmente o que é a deturpação espírita e várias subestimam, achando que se trata de uma "saudável afinidade com os ensinamentos do Cristo".
Acostumou-se mal e leva-se realmente gato por lebre, achando natural o "espiritismo" brasileiro evocar jesuítas, falar em milagres igrejeiros, fazer apologia da desgraça humana como "atalho para obter as bênçãos divinas" e, em contrapartida, supor mundos espirituais e acontecimentos futuros sem fazer qualquer tipo de fundamentação teórica, por menor que seja.
Recentemente, os defensores do "espiritismo" brasileiro chegam mesmo ao cinismo de dizer que "assumem imperfeições", adotando este eufemismo que é de "admitir que erra para não enfrentar más consequências desses erros", uma espécie de manobra no qual "se confessa um crime para não ser preso", para que se deixe tudo como está.
Sob o pretexto de "enriquecer o debate", mas se empenhando pelo contrário, os "isentões espíritas" - pessoas que usam a retórica do "equilíbrio", da "imperfeição" e da "imparcialidade" para abafar discussões mais aprofundadas que apontariam erros graves no "movimento espírita" - acabam puxando para trás, no desespero de evitar a eclosão de novos problemas.
Eles tentam blindar "médiuns" como Chico Xavier através da retórica da "imperfeição", distorcendo o sentido que se atribui a Jesus Cristo na suposta parábola da adúltera - que teria sido criação da Idade Média - , na qual se fala "quem nunca errou que atire a primeira pedra". Esse apelo metafórico, duramente moralista demais para ser realmente atribuído a Jesus, estimula a confusão entre perdão e permissividade, usando uma mulher como "alegoria".
Desse modo, cria-se uma complacência ao erro que os "espíritas" dizem reprovar, mas praticam com muita convicção. E tal "parábola", além de estimular, no Brasil reacionário de hoje, o feminicídio, praticado por homens "cheios da razão", por outro lado permite que "espíritas" possam errar à vontade, porque não enfrentarão consequências graves para seus atos.
Chico Xavier fez horrores que vão dos desvios doutrinários para longe da Codificação e produção de literatura falsa, que hoje se chama fake. Mas é blindado por causa dessa confusão do perdão e permissividade, da "misericórdia" que mais parece um sinal verde para a farra que se faz hoje com textos igrejistas fake, atribuídos aos mortos da moda.
E é tanta irregularidade que tais práticas precisam ser, se não canceladas, suspensas. Depois que uma falsa Cássia Eller veio em "mensagem espiritual" narrando dragões cuspindo fogo no umbral, e, recentemente, um suposto Domingos Montagner fazendo propaganda religiosa, as obras "mediúnicas" se tornaram cada vez mais raras.
Enquanto isso, o que se transmite sob o rótulo "espírita" são coisas banais e não necessariamente espíritas: angústias individuais, relações familiares, episódios manjados da vida de Jesus, efemérides como o Natal e por aí vai. E a "prática espírita" se reduz a meros atos de Assistencialismo, com as instituições "espíritas" fazendo o papel de distribuidoras dos donativos trazidos pelos fiéis, uma armação que lembra muito os quadros do Caldeirão do Huck.
Toda essa erosão mostra o quanto o "espiritismo" brasileiro não resolve e não quer resolver suas contradições. A deturpação do Espiritismo se tornou refém de si mesma, produzindo totens como Chico Xavier, com o objetivo de alavancar vendas de livros.
Mas as "psicografias" fake (ou psicografake) feitas visando a propaganda religiosa, acabam soando irregulares e aí, elas são suspensas, enquanto o "espiritismo" brasileiro se sujeita a ser um mero receituário moral com atividades assistencialistas.
Comentários
Postar um comentário