
Parece desagradável, mas é urgente aconselhar as pessoas a desconfiarem do projeto "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", anunciado pelo "espiritismo" brasileiro. A patriotada religiosa fascina muitas pessoas por seus enunciados, pegando de surpresa muita gente esclarecida, mas se trata de um projeto perverso, por sugerir uma supremacia político-religiosa.
Ninguém vai anunciar que um cavalo de Troia tem soldados dentro. Da mesma forma, ninguém vai dizer que uma teocracia exercerá poder concentrado na religião e na política, embora, no plano político-econômico, se considera hoje que o Brasil é um país-cliente dos EUA e, se alguém tiver coragem de levar a sério as "profecias" de Francisco Cândido Xavier, a destruição do Hemisfério Norte fará os estadunidenses de alguma forma migrarem e dominarem o Brasil.
É certo que, no entanto, essa migração não ocorreria na Amazônia, pois os estadunidenses só ocupariam essa área para fins de exploração econômica, mas não como moradia. Sociologicamente, eles tendem a migrar para os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo ou, em parte, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais. E, agora, os EUA já têm, além do Havaí, do Alasca e da possessão de Porto Rico, a base de Alcântara, no Maranhão, como extensão de seu território.
Voltando ao projeto da "pátria do Evangelho", as alegações de "nação fraternal" são puramente emocionais, os enunciados são muito agradáveis e até "fofos". Mas a realidade é mais embaixo e sabemos que o Catolicismo medieval, lançado pelo monarca do Império Romano do Oriente (mais tarde Império Bizantino), o imperador Constantino, também veio com o mesmíssimo discurso.
"ESPIRITISMO" BRASILEIRO DIZ ABOMINAR A IDADE MÉDIA, MAS ADOTA IDEIAS MEDIEVAIS
O maior problema é que uma coisa é o enunciado, que traz as promessas de que tudo será positivo, pacificador, fraternal, e que os conflitos serão resolvidos com o "diálogo cristão". Ele terá garantias de se colocar na prática? Não. Também o Catolicismo medieval prometia o "entendimento cristão", baseado na figura de Jesus Cristo, e não despertava a menor desconfiança no seu começo.
Mas, depois, o Catolicismo medieval mostrou sua verdadeira face. Embora tivesse sido lançado nos últimos tempos do Império Romano, o Catolicismo medieval tornou-se expressão tanto do poder do Império Bizantino quanto do poder da fragmentada Europa através de sua sede, Roma, na qual está inserido o Vaticano, uma pitoresca "nação católica", com status equiparado ao de um principado.
Milícias sanguinárias chamadas de Cruzadas faziam "guerras santas" para defender o poder da "Santa Igreja". Torturas, queimadas e trágicos espetáculos com hereges jogados nos estádios para serem devorados por leões e, na falta deles, serem queimados vivos - coisa que era feita também no meio da rua - , eram feitas para mostrar o "diálogo cristão" que faziam com os hereges que se recusavam a serem convertidos para a fé cristã, denominados, assim, "cristãos-novos".
O "espiritismo" brasileiro diz ser contra o Catolicismo medieval assim como o governo Michel Temer se dizia contra a ditadura militar e o governo Jair Bolsonaro atribuiu ao nazismo como "uma ideologia de esquerda". Tiranos novos, comprometidos com malefícios sociais, não querem ser vinculados a tiranias velhas, e a elas se atribui como "fatos passados" ou tentam botá-las na conta de seus opositores.
No entanto, por mais que se veja textos de Emmanuel ou mesmo citações em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho de que o medievalismo católico está "superado", o vínculo existencial do mentor de Chico Xavier com o Catolicismo jesuíta do Brasil colonial, que mantinha práticas e crenças medievais, é bastante notório.
Em dado momento, ideias medievais saltam no pensamento de Chico Xavier, como a aceitação do sofrimento em silêncio, sufocando mágoas e revoltas em torno de uma conformação, "estimulada" pela fé, com a desgraça vivida, um conceito que vem da Teologia do Sofrimento, que é a corrente mais medieval do Catolicismo da Idade Média e que foi resgatada no mundo moderno a partir da sóror francesa Santa Teresa de Lisieux (1873-1897).
Além disso, mostrando-se contrário aos ensinamentos espíritas originais, Chico Xavier criminalizava o senso crítico, o qual definia como "tóxico do intelectualismo", supostamente por influência do mentor Emmanuel. Chico Xavier condenava o senso crítico, até porque ele o desmascararia diante de provas consistentes de que sua "psicografia" sempre foi fake, com confirmações de que ela passava por revisões feitas por editores da "Federação Espírita Brasileira".
O PROBLEMA É COM O "OUTRO"
O grande problema que se terá numa hipotética "pátria do Evangelho" é o tratamento dado ao "outro". Nem todos são "espíritas" e nem todos são sequer cristãos. Além disso, no Brasil, as religiões dominantes, principalmente as evangélicas neopentecostais (como Igreja Universal do Reino de Deus) e o "movimento espírita", usam em causa própria a queixa de "intolerância religiosa" quando isso não acontece contra elas.
Temos que explicar que a intolerância religiosa é um triste fenômeno que, na verdade, atinge religiões ligadas a grupos sociais considerados excluídos da ideologia ocidental dominante, como povos de origem africana e árabe, respectivamente relacionados ao candomblé e umbanda e ao islamismo. Sendo religiões de elite, as seitas evangélicas neopentecostais e o "movimento espírita" (FEB), são até blindadas e gozam de privilégios e tratamento diferenciado na imprensa.
No caso do "espiritismo" brasileiro, o tratamento com o "outro" pode até ser perverso, com o tempo. Aparentemente, a supremacia "espírita" só traz coisas boas, conforme a embalagem agradável que a religião apresenta aos brasileiros. Mas uma coisa é a teoria, na qual se resolveriam os conflitos apenas com diálogo sereno e um discreto proselitismo "sem pretensões" - do tipo "você não é obrigado a ser espírita, mas seria melhor que fosse" - , a outra é a prática.
Diante da revelação do escândalo de Amauri Xavier, que ameaçou denunciar as fraudes que envolveram o tio Chico Xavier, os seguidores do "médium" nascido em Pedro Leopoldo se revelam também rancorosos e vingativos, contrariando a fama de "mansuetude" que tanto se fala desses adeptos e simpatizantes. Nas redes sociais, os chiquistas chegam mesmo a ter reações histéricas semelhantes aos dos bolsomínions (seguidores de Jair Bolsonaro).
Além disso, o moralismo "espírita" conhecido no Brasil é de natureza punitivista, herança roustanguista. Apesar da tão paparicada associação oficial a Allan Kardec, o "espiritismo" brasileiro nasceu no roustanguismo, e o pensamento de Jean-Baptiste Roustaing (ou J. B. Roustaing) foi traduzido por Chico Xavier em seus mais de 400 livros, adaptando o pensamento roustanguiano ao contexto brasileiro, podendo, assim, a FEB jogar o advogado que lançou Os Quatro Evangelhos debaixo do tapete.
O moralismo "espírita" culpabiliza a vítima, sempre vista como "única responsável" pelas adversidades que sofre. Seu ideário contém coisas perversas como pedir para encarar a desgraça como se fosse uma pessoa amada, suportar o infortúnio em silêncio (e também orar em silêncio e evitar demonstrar sofrimento aos outros) e até "combater o inimigo em si mesmo", neste caso uma postura bastante dúbia. O "espiritismo" condena o suicídio, mas diante dessa pregação, acaba estimulando ao sofredor desesperado aquilo que justamente reprova.
A tese dos "reajustes espirituais", "resgates morais" ou mesmo "resgates coletivos" - ideia na qual se atribui um "destino comum" a pessoas diferentes que, situadas num mesmo lugar, sofrem um mesmo infortúnio ou tragédia - revela esse grau punitivista e o risco maior é que esses pretextos - que são contrários à moral kardeciana, que nunca falou em tais ideias - fossem utilizados para justificar extermínios e massacres que a "pátria do Evangelho" pode fazer ao longo do tempo.
EXEMPLOS CONTEMPORÂNEOS: FASCISMO E IMPERIALISMO DOS EUA
O mais grave disso tudo é que o projeto do "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", que tem surpreendente analogia com o lema trazido pelo candidato fascista Jair Bolsonaro, "Brasil, Acima de Tudo, Deus Acima de Todos", se desenhará com uma dupla restauração, a do Império Romano e a do Catolicismo medieval.
A marcha dos retrocessos sociais, a ascensão do fundamentalismo religioso ao lado de uma mediocrização cultural galopante mostram a preparação desse cenário macabro, que no Brasil se desenha com a bregalização, com a hegemonia do poder midiático, com a realização de retrocessos sócio-político-econômicos e com a desqualificação do senso crítico e dos debates intelectualizados no nosso país.
A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, logo no ano da "data-limite" sonhada por Chico Xavier, não é um caso acidental, afinal a eleição do ex-militar mostra que as condições psicológicas que o favoreceram são as mesmas que blindaram Chico Xavier que, apesar de gozar de uma narrativa dócil vigente há 40 anos, que, à maneira de um enredo de novela, define o "médium" como um pretenso filantropo, teve um passado terrivelmente arrivista, tanto quanto o atual presidente da República.
É só verificar a afinidade de sintonias de uma sociedade que parece moderna na embalagem, mas possui um conteúdo ideológico extremamente conservador, na qual eleitores de Bolsonaro, em boa parte, são os mesmos que apoiam Chico Xavier, enquanto que os chiquistas que repudiam o político do PSL ficam nervosos, confusos e contraditórios em suas reações, sem poder explicar a disparidade de seus pontos de vista, que creditam o reacionário "médium" como pretenso progressista.
A experiência de países dominando o mundo não é boa. Adolf Hitler sonhava com um império alemão, e prometia solidariedade àqueles que o seguiam. Os EUA, com seu imperialismo, capaz de produzir golpes militares na América Latina, também é um trágico exemplo de nação que se proclama o "centro do mundo", uma ideia que nada tem de unificadora.
A ideia de "unificação" tem sempre o lado macabro: a eliminação do "outro" que não consegue ser trazido para o "rebanho". Isso ocorrerá com o "espiritismo" brasileiro e não são os maravilhosos enunciados da "pátria do Evangelho" que constituirão exceção à regra. Muito pelo contrário. Em dado momento, o "espiritismo" brasileiro usará a desculpa dos "reajustes espirituais" para reprimir e matar os novos hereges, caso eles não compartilhem da "fé raciocinada" a ser imposta ao planeta.
ALLAN KARDEC REPROVARIA A "PÁTRIA DO EVANGELHO"
Melhor que que ninguém, o pedagogo de Lyon, o codificador Allan Kardec, reprovaria a escolha de determinada nação para ser símbolo de algum destino missionário na humanidade. Concepções terrenas, a delimitação de uma nação tem validade apenas planetária, e não deve ser atribuída missões salvadoras, porque isso é impossível. A supremacia de uma nação sempre simboliza algum domínio, por mais que se fale em "um mundo mais irmão".
Kardec seria o primeiro a reprovar, com muito rigor, a "pátria do Evangelho", por antever seu risco de supremacia religiosa. Ele mesmo concordaria que o discurso já havia sido feito, antes, com o Catolicismo medieval, que também prometia "um mundo mais irmão" mas depois promoveu um dramático "banho de sangue" que gerou trauma entre vários povos.
Falar é muito fácil e a supremacia político-religiosa não iria ficar sempre resolvendo conflitos religiosos e políticos estendendo a mão amiga e falando em voz mansa com os divergentes. E, no momento em que ações terroristas, no exterior, e demonstrações de ódio assassino, em países como o Brasil, ocorrem e crescem de maneira assustadora, surge o alerta de que a "pátria do Evangelho" pode se revelar, no futuro, um projeto fascista de trajetória traumática para a humanidade.
E se Allan Kardec reprovaria, sem hesitação, a "pátria do Evangelho", para desespero dos "espíritas" brasileiros, o mesmo não ocorreria com Roustaing, que aliás lançou, em Os Quatro Evangelhos - atribuído, tendenciosamente, aos quatro evangelistas (Mateus, Lucas, João e Marcos) - , uma "profecia" de que a "religião espírita", catolicizada, iria dominar o mundo.
Aliás, neste sentido, o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, escrito, a quatro mãos, pelas mentes terrenas de Chico Xavier e Antônio Wantuil de Freitas (então presidente da FEB), mas levianamente creditado ao espírito de Humberto de Campos, soa como uma tradução quase literal de Os Quatro Evangelhos, não fossem as diferenças de contexto, abordagens e detalhes específicos nas narrativas.
Isso porque os dois livros se irmanam no igrejismo supostamente missionário, que prometem uma teocracia futura, sendo que Roustaing apenas não delimita a nação "beneficiária" de tal "messianismo", o que é feito por Chico Xavier usando um antigo lema de Leopoldo Machado, ex-dirigente da FEB, dito em 1934: "Brasil, Berço da Humanidade, Pátria dos Evangelhos". Com Chico Xavier, juntou-se o roustangismo com a patriotada e quase ninguém percebeu a farsa da teocracia que querem fazer do nosso sofrido Brasil.
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