A vexaminosa cobertura dos 150 anos de morte de Allan Kardec atentou para uma grande omissão de uma informação importante. A de que o Espiritismo, no Brasil, foi desenvolvido desviando-se dos ensinamentos originais do pedagogo francês.
Nem mesmo a BBC Brasil, sucursal da estatal britânica que, na sua equipe brasileira, prima por escrever bons textos de informação abrangente e senso investigativo, se encorajou a cobrir a deturpação do Espiritismo, se limitando a fazer, na prática, um press release da "Federação Espírita Brasileira". Até o termo "espiritismo à brasileira", que denomina a deturpação, foi apenas mencionado sem que seu significado fosse sequer citado vagamente.
A imprensa brasileira, mesmo a de esquerda, praticamente age em silêncio, salvo raras exceções, quanto à deturpação do Espiritismo. Poucos têm a coragem de alertar que a chamada "catolicização do Espiritismo" não é um fenômeno acidental nem ele é resultante de uma "saudável identificação com a religiosidade cristã muito popular no Brasil", desculpa comumente usada pelos "espíritas" e até por seus simpatizantes mais leigos.
A situação é tão grave que a única informação oficial que a imprensa brasileira divulga da trajetória do Espiritismo parece enredo de novela. Poderíamos narrar, da seguinte maneira, em discurso digno de um conto de fadas:
"Era uma vez, um professor chamado Hippolyte Rivail, que de repente descobriu os fenômenos espirituais e resolveu codificar suas descobertas, fundando o Espiritismo, movimento que, depois, foi introduzido no Brasil, onde foram somadas as tradições populares da religiosidade cristã, construindo a Doutrina Espírita que atualmente se conhece em todo o mundo".
Muito bonito esse texto, mas ele é cheio de inverdades. Quem investiga os bastidores do "espiritismo" brasileiro ficará chocado ao ver coisas que nem mesmo os jornalistas investigativos da atualidade têm coragem de mostrar.
As pessoas verão, diante de uma investigação apurada, que o Espiritismo foi introduzido no Brasil não pelas ideias de Allan Kardec, mas pelo igrejismo moralista de Jean-Baptiste Roustaing. Verão, também, que o suposto médium de Minas Gerais, Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier, realizou pastiches literários sob a ajuda e supervisão de editores da FEB e que sua tão festejada psicografia era, na verdade, uma constrangedora produção de literatura fake.
Além disso, ideias como "cidades espirituais", "criança-índigo", "data-limite" e outros delírios místicos e moralistas, estão abertamente contra os ensinamentos trazidos pelo Espiritismo original. Eles remetem ao roustanguismo, e isso é vergonhoso quando se vê seus pregadores bajulando Erasto - espírito que já falava do risco de deturpação - e pedindo para "não só conhecermos Kardec, mas vivê-lo no nosso cotidiano".
Não bastasse isso, o moralismo do "espiritismo à brasileira" assimilou ideias da Teologia do Sofrimento, corrente mais medieval do Catolicismo da Idade Média, apela para conceitos retrógrados como a aceitação conformista do sofrimento extremo, algo que destoa severamente dos ensinamentos espíritas e acaba colocando Chico Xavier em oposição a Kardec, pois o Espiritismo original se pautava no Iluminismo francês e sua suposta adaptação brasileira, no Brasil colonial e tardiamente medieval.
Nada disso é devidamente investigado e mesmo a mídia de esquerda, capaz de destrinchar os mais ocultos mecanismos do poder dominante representado pela mídia, pela política, pelo entretenimento e até pela religião, ainda fala da deturpação espírita de maneira bastante tímida e cautelosa, contrariando as recomendações de crítica rigorosa que Erasto havia feito, nos tempos de Kardec.
Pior ainda. Nem mesmo semiólogos como Wilson Roberto Vieira Ferreira, do Cinegnose, e Nelson Job, professor universitário, conseguem enxergar a deturpação do Espiritismo. Mais grave: Wilson Roberto, capaz de penetrar nas entranhas discursivas de seriados de ficção científica, não tem a menor coragem de enxergar o "paiol de bombas semióticas" - nos dizeres do blog Charlatães do Espiritismo - presente na trajetória de Chico Xavier.
E como cobrar da nossa imprensa a investigação sobre a deturpação espírita, quando o escândalo que surge no meio, como no caso do "médium" goiano João Teixeira de Faria, o João de Deus, é abafado com a defenestração dele, acusado de vários crimes, do "movimento espírita"? E como esperar que surjam equivalentes de Attila Paes Barreto, jornalista investigativo que lançou o raro e precioso O Enigma Chico Xavier Posto à Clara Luz do Dia (1944), na atualidade?
É necessário, neste caso, divulgar, pela Internet, a deturpação que fere, de maneira não mortal, mas ainda sangrenta, o legado kardeciano, desenvolvido de maneira solitária e trabalhosa. Investigar a deturpação é necessária e para isso é preciso romper com a narrativa publicitária da FEB e parar de produzir releases travestidos de reportagens espíritas. Espera-se que uma Folha de São Paulo faça panfletos da FEB disfarçados de reportagens, mas a BBC Brasil isso é incabível.
A desonestidade doutrinária do "espiritismo à brasileira" esconde uma série infindável de incidentes graves demais para que sejam ignorados pela reportagem. Não dá mais para aceitar a narrativa do nível de contos de fadas que prevalecem oficialmente para o Espiritismo, dificultando a real compreensão da doutrina kardeciana e dos descaminhos abusivos que foram feitos no Brasil.
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