
O "espiritismo" brasileiro usa como bordão a ideia de ser "a religião da caridade". Mas suas pregações em prol da Teologia do Sofrimento, explícita nas ideias mas nunca assumida na sua retórica, mostram que até palavras que parecem sempre agradáveis, como "caridade" e "fraternidade", podem ser inseridas num discurso de crueldade e leviandade.
"Caridade" virou um bordão surrado para blindar os abusos que o deturpado "espiritismo" brasileiro comete sem o menor escrúpulo. A religiosidade virou um pretexto para a licenciosidade doutrinária, para a permissividade de desvios em relação à doutrina kardeciana original que soam vergonhosos, mas como se apoiam em "valores cristãos", tudo é permitido.
Para blindar, sobretudo, a figura de Francisco Cândido Xavier, envolvido em episódios arrepiantes como a deturpação doutrinária - seus livros contém conceitos que contrariam os ensinamentos espíritas originais - , literatura fake supostamente mediúnica e apoio a fraudes de materialização, usa-se esse surrado refrão. "Ele deturpou, mas pelo menos fez caridade", "Ele errou, mas fez caridade", "Ele não psicografava, mas ajudava muita gente" e tantas baboseiras nesse sentido.
Só que a gente não vê as provas da "caridade" de Chico Xavier. Algumas atividades associadas a seu "trabalho filantrópico" são de caráter muito duvidoso, como as "cartas mediúnicas" que envolvem não só mensagens fake produzidas por "leitura fria" (engenhoso processo de análise comportamental de um depoente, através de informações sutis e gestos), mas também a espetacularização da tragédia humana e exploração sensacionalista das tragédias familiares.
Outras, como a doação de mantimentos, roupas e outros bens, revelam a hipocrisia de uma "caridade" que não parte do suposto benfeitor, que se limita a pedir aos outros para ajudar, sem oferecer alguma coisa. Além disso, as ajudas não vão além aos limites meramente paliativos do Assistencialismo, uma "caridade" de baixos efeitos sociais que só servem para promover adoração ao "benfeitor" de ocasião.
Mesmo as mensagens "consoladoras" de Chico Xavier também não são caridosas, porque elas seguem o sentido da aceitação do sofrimento extremo, pois, em vez de socorrer os oprimidos, os apela para eles ficarem na sua situação ou então sofrer sacrifícios acima dos limites para sair da mesma.
A "caridade" pode ser usada no sentido leviano, como palavras como "democracia" e "liberdade". Isso pode transformar a "caridade" num pretexto para práticas cruéis, como a criação de pobres no "cativeiro" das casas "assistenciais", sujeitos a uma exploração paternalista e dominadora.
MADRE TERESA DE CALCUTÁ, O "ANJO DO INFERNO"
Denúncias trazidas pelo jornalista Christopher Hitchens (1949-2011) sobre Madre Teresa de Calcutá, em livro e documentário, revelaram, a partir de depoimentos de ex-funcionários a serviço das Missionárias da Caridade, que a "santa", que os brasileiros comparam fortemente a Chico Xavier, maltratava internos, deixando-os em situações degradantes.
Os doentes eram expostos ao contágio uns aos outros. Não havia higiene. Os internos eram mal alimentados. Quando estavam doentes, eram remediados apenas por aspirina e paracetamol. Eles dormiam em camas desconfortáveis, quando muito comparáveis a de quartéis militares. E, ao morrerem, ainda recebiam comentários felizes de Madre Teresa - devota, tal qual Chico Xavier, da Teologia do Sofrimento - , que comemorava dizendo que "são mais anjos a caminho de Deus".
A "caridade" pode esconder meios perniciosos diversos. Há o superfaturamento de dinheiro, sobretudo no Brasil, onde instituições religiosas não pagam impostos e podem pedir recursos superfaturados (ou seja, com valor financeiro superior ao realmente necessário), sem despertar desconfiança, afinal, o grande montante é solicitado "pelo pão dos pobrezinhos e enfermos".
Há também regimes de internato, maus tratos no interior das "casas de caridade", há a promoção social das elites paternalistas com seu "bom-mocismo", e há até mesmo a dominação social, que supostamente assiste e acolhe os pobres, mas tem por fim mantê-los na sua simbólica inferioridade social, dentro de traiçoeiras relações de hierarquia. Sem falar que muitos desses atos têm por objetivo atrair "mais rebanho" para as instituições religiosas.
Falando nisso, a ideia de "fraternidade", que muitos imaginam ser apenas da "solidariedade mais pura", pode também significar um pretexto para a dominação de pessoas. A retórica religiosa fala muito em "rebanho", que é um agrupamento semelhante ao de um gado bovino, e as "ovelhas" da religião são uma analogia para pessoas submissas e conformadas com seus infortúnios.
O "espiritismo" brasileiro não é exceção à regra, e a religião demonstra, nas suas ideias, ser contra a individualidade humana, confundida com individualismo. A religião criminaliza o prazer humano, a vontade humana, e seu moralismo retrógrado, mas ingenuamente visto por muitos como "moderno", sempre apela para a renúncia da vontade e o abandono de projetos de vida, sob o pretexto de que se deve, antes de tudo, subordinar-se aos "desígnios de Deus".
Daí que vemos a preocupação do "espiritismo" brasileiro, não muito diferente das demais religiões de caráter bastante conservador, em fazer as pessoas serem padronizadas, como naqueles filmes de ficção científica, mas com a diferença de produzir uma retórica mais suave e agradável, usando o termo "fraternidade" como eufemismo para "gado humano".
George Orwell duvidava desse conceito forçado de "fraternidade". No livro infantil A Revolução dos Bichos (Animal Farm), o autor de 1984, livro sobre a opressão humana, escreveu uma frase antológica: "Todos somos irmãos, mas uns são mais irmãos do que outros".
A retórica da "fraternidade" não é capaz de resolver conflitos, diferenças nem animosidades. Fica parecendo uma pacificação de meio da missa, na qual artificialmente se promove uma conciliação sem resolução dos problemas. É como se promovesse uma "pacificação" na qual os oprimidos ficam em paz com suas desgraças e os opressores ficam em paz com seus privilégios abusivos. É a "paz sem voz" que a canção do falecido Marcelo Yuka, "A Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)" diz.
Temos que parar para pensar antes de repetirmos, como papagaios, o bordão "Chico Xavier fez caridade". A verdade é que o "médium" nunca fez caridade e ela tornou-se um artifício de promoção pessoal e de blindagem para ocultar seus atos abusivos, dos quais se incluiu a falsa psicografia que ofendeu a memória de autores mortos e a exploração das tragédias familiares que alimentou a imprensa sensacionalista.
Assim como o conceito de "democracia" pode ser desvirtuado para defesa de causas nada democráticas, as ideias de "fraternidade" e "caridade" podem ser conduzidas para pretextos de perversidade e dominação da humanidade. Temos que tomar cuidado, porque muitas vezes as palavras mais dóceis são as que mais podem ferir.
Para blindar, sobretudo, a figura de Francisco Cândido Xavier, envolvido em episódios arrepiantes como a deturpação doutrinária - seus livros contém conceitos que contrariam os ensinamentos espíritas originais - , literatura fake supostamente mediúnica e apoio a fraudes de materialização, usa-se esse surrado refrão. "Ele deturpou, mas pelo menos fez caridade", "Ele errou, mas fez caridade", "Ele não psicografava, mas ajudava muita gente" e tantas baboseiras nesse sentido.
Só que a gente não vê as provas da "caridade" de Chico Xavier. Algumas atividades associadas a seu "trabalho filantrópico" são de caráter muito duvidoso, como as "cartas mediúnicas" que envolvem não só mensagens fake produzidas por "leitura fria" (engenhoso processo de análise comportamental de um depoente, através de informações sutis e gestos), mas também a espetacularização da tragédia humana e exploração sensacionalista das tragédias familiares.
Outras, como a doação de mantimentos, roupas e outros bens, revelam a hipocrisia de uma "caridade" que não parte do suposto benfeitor, que se limita a pedir aos outros para ajudar, sem oferecer alguma coisa. Além disso, as ajudas não vão além aos limites meramente paliativos do Assistencialismo, uma "caridade" de baixos efeitos sociais que só servem para promover adoração ao "benfeitor" de ocasião.
Mesmo as mensagens "consoladoras" de Chico Xavier também não são caridosas, porque elas seguem o sentido da aceitação do sofrimento extremo, pois, em vez de socorrer os oprimidos, os apela para eles ficarem na sua situação ou então sofrer sacrifícios acima dos limites para sair da mesma.
A "caridade" pode ser usada no sentido leviano, como palavras como "democracia" e "liberdade". Isso pode transformar a "caridade" num pretexto para práticas cruéis, como a criação de pobres no "cativeiro" das casas "assistenciais", sujeitos a uma exploração paternalista e dominadora.
MADRE TERESA DE CALCUTÁ, O "ANJO DO INFERNO"
Denúncias trazidas pelo jornalista Christopher Hitchens (1949-2011) sobre Madre Teresa de Calcutá, em livro e documentário, revelaram, a partir de depoimentos de ex-funcionários a serviço das Missionárias da Caridade, que a "santa", que os brasileiros comparam fortemente a Chico Xavier, maltratava internos, deixando-os em situações degradantes.
Os doentes eram expostos ao contágio uns aos outros. Não havia higiene. Os internos eram mal alimentados. Quando estavam doentes, eram remediados apenas por aspirina e paracetamol. Eles dormiam em camas desconfortáveis, quando muito comparáveis a de quartéis militares. E, ao morrerem, ainda recebiam comentários felizes de Madre Teresa - devota, tal qual Chico Xavier, da Teologia do Sofrimento - , que comemorava dizendo que "são mais anjos a caminho de Deus".
A "caridade" pode esconder meios perniciosos diversos. Há o superfaturamento de dinheiro, sobretudo no Brasil, onde instituições religiosas não pagam impostos e podem pedir recursos superfaturados (ou seja, com valor financeiro superior ao realmente necessário), sem despertar desconfiança, afinal, o grande montante é solicitado "pelo pão dos pobrezinhos e enfermos".
Há também regimes de internato, maus tratos no interior das "casas de caridade", há a promoção social das elites paternalistas com seu "bom-mocismo", e há até mesmo a dominação social, que supostamente assiste e acolhe os pobres, mas tem por fim mantê-los na sua simbólica inferioridade social, dentro de traiçoeiras relações de hierarquia. Sem falar que muitos desses atos têm por objetivo atrair "mais rebanho" para as instituições religiosas.
Falando nisso, a ideia de "fraternidade", que muitos imaginam ser apenas da "solidariedade mais pura", pode também significar um pretexto para a dominação de pessoas. A retórica religiosa fala muito em "rebanho", que é um agrupamento semelhante ao de um gado bovino, e as "ovelhas" da religião são uma analogia para pessoas submissas e conformadas com seus infortúnios.
O "espiritismo" brasileiro não é exceção à regra, e a religião demonstra, nas suas ideias, ser contra a individualidade humana, confundida com individualismo. A religião criminaliza o prazer humano, a vontade humana, e seu moralismo retrógrado, mas ingenuamente visto por muitos como "moderno", sempre apela para a renúncia da vontade e o abandono de projetos de vida, sob o pretexto de que se deve, antes de tudo, subordinar-se aos "desígnios de Deus".
Daí que vemos a preocupação do "espiritismo" brasileiro, não muito diferente das demais religiões de caráter bastante conservador, em fazer as pessoas serem padronizadas, como naqueles filmes de ficção científica, mas com a diferença de produzir uma retórica mais suave e agradável, usando o termo "fraternidade" como eufemismo para "gado humano".
George Orwell duvidava desse conceito forçado de "fraternidade". No livro infantil A Revolução dos Bichos (Animal Farm), o autor de 1984, livro sobre a opressão humana, escreveu uma frase antológica: "Todos somos irmãos, mas uns são mais irmãos do que outros".
A retórica da "fraternidade" não é capaz de resolver conflitos, diferenças nem animosidades. Fica parecendo uma pacificação de meio da missa, na qual artificialmente se promove uma conciliação sem resolução dos problemas. É como se promovesse uma "pacificação" na qual os oprimidos ficam em paz com suas desgraças e os opressores ficam em paz com seus privilégios abusivos. É a "paz sem voz" que a canção do falecido Marcelo Yuka, "A Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)" diz.
Temos que parar para pensar antes de repetirmos, como papagaios, o bordão "Chico Xavier fez caridade". A verdade é que o "médium" nunca fez caridade e ela tornou-se um artifício de promoção pessoal e de blindagem para ocultar seus atos abusivos, dos quais se incluiu a falsa psicografia que ofendeu a memória de autores mortos e a exploração das tragédias familiares que alimentou a imprensa sensacionalista.
Assim como o conceito de "democracia" pode ser desvirtuado para defesa de causas nada democráticas, as ideias de "fraternidade" e "caridade" podem ser conduzidas para pretextos de perversidade e dominação da humanidade. Temos que tomar cuidado, porque muitas vezes as palavras mais dóceis são as que mais podem ferir.
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