O maior combate, até agora, dentro do "movimento espírita", dos chamados científicos (ligados às bases doutrinárias originais) e os místicos (ligados às influências religiosas herdadas do Catolicismo jesuíta do Brasil-colônia), se deu quando Antônio Wantuil de Freitas anunciou sua aposentadoria como presidente da FEB, em 1969. A aposentadoria foi concretizada em 1970 e, quatro anos depois, Wantuil, doente, "retornou à pátria espiritual".
No ano de 1969, diante dos conflitos entre os herdeiros do poder de Wantuil na "Federação Espírita Brasileira" (FEB), entre eles, Luciano dos Anjos, e os principais astros do "movimento espírita", Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco (que Luciano denunciou ter havido prática de plágio da obra do primeiro feita pelo segundo), um escândalo veio à tona.
Esse escândalo foi a revelação que os lucros da traduções que a própria FEB publicava do seu acervo, em idiomas como inglês, espanhol e até esperanto, foram para os cofres de Wantuil e seus parceiros na cúpula da instituição. Aparentemente, Chico Xavier manifestou-se "profundamente entristecido" com tamanha revelação, mas a postura é um tanto suspeita.
Consta-se, na verdade, que Chico Xavier sempre consentiu, desde o começo, dessa finalidade financeira dos seus livros "psicográficos". Era um acordo que ele fez com Antônio Wantuil de Freitas - que atuava como uma espécie de "empresário" do "médium", à maneira do que acontece com os astros pop - , para que o faturamento das "psicografias" fosse depositado na conta da FEB, sob o pretexto de que "seria aplicado na caridade".
Só que esse acordo, em 1969, já tinha 37 anos. E evidentemente a desculpa da "caridade" enganou muita gente. Hoje muitos se deixam levar pela imagem dócil de Chico Xavier, mas ele cometeu fraudes "mediúnicas" que iam de obras literárias - que supostamente evocavam grandes escritores, mas o resultado soava comprovadamente medíocre - a fraudes de materialização.
Naquela época, também estourava o escândalo de Otília Diogo, que foi desmascarada em 1970, após cinco anos de jornalismo investigativo. Foi apreendido um material que correspondia aos supostos espíritos interpretados pela farsante, principalmente a religiosa Irmã Josefa, e que incluiu várias roupas e outros objetos relacionados.
Nesse desfecho, o "movimento espírita" tentou inocentar Chico Xavier, alegando que ele "foi enganado por Otília Diogo", mas, depois, foram divulgadas fotos de Nedyr Mendes da Rocha, um fotógrafo solidário ao "médium" mineiro, no final dos anos 1970. Nelas Chico demonstra estar por dentro do processo de Otília e estava bastante animado e comunicativo, indicando profunda cumplicidade com a farsante.
DETURPAÇÃO RADICAL
Foi uma fase de escândalos e revelações, entre 1969 e 1975, entre as quais havia até mesmo Chico Xavier esculhambando os movimentos sociais de esquerda e apoiando abertamente a ditadura militar, um fato menosprezado pelas esquerdas contemporâneas, iludidas com a imagem glamourizada do "médium" que prevalece nas últimas quatro décadas.
Nesse período, o "espiritismo" brasileiro teve uma oportunidade de ser desmascarado, pelas raízes fundamentadas em J. B. Roustaing nas quais sempre pautou a FEB. E um dos espíritas autênticos, da corrente científica, o jornalista José Herculano Pires, se empenhou em combater a deturpação.
Sobrinho do contador caipira Cornélio Pires, Herculano Pires foi um tradutor correto da obra de Allan Kardec, respeitando o texto original e esclarecendo alguns de seus pontos conforme o pensamento original do pedagogo francês estudado e compreendido pelo jornalista.
Com vários escândalos envolvendo a deturpação espírita, inclusive Divaldo Franco encampando a causa das "crianças-índigos" - uma farsa esotérica criada nos EUA por interesses puramente comerciais - , Herculano Pires chegou a definir a forma deturpada que recebeu o Espiritismo no Brasil de "doutrina dos papalvos" ("papalvo" é sinônimo de "idiota").
Houve até mesmo um plano, da "Federação Espírita do Estado de São Paulo" (FEESP), de criar uma nova tradução da obra de Allan Kardec com um texto ainda mais roustanguista, o que foi denunciado por Herculano Pires, em 1973. O plano da FEESP acabou sendo descartado.
Herculano Pires se empenhou contra a deturpação espírita, denunciando o legado do "Pacto Áureo" da FEB de 1949 (que consagrou o Roustanguismo no Brasil e expressou o poder central de Wantuil de Freitas) e atuando contra o igrejismo no "movimento espírita". O clamor pela fidelidade doutrinária era um recado bem claro, mas que, infelizmente, não se concretizou, pelas próprias fraquezas de Herculano Pires.
"FASE DÚBIA" E AGRAVAMENTO DA "CATOLICIZAÇÃO"
Em certo momento, porém, Herculano Pires perdeu o pulso firme no combate à deturpação. Seduzido pela falácia da "religiosidade brasileira", ele baixou a guarda nesse combate. Superestimou a amizade que tinha com o deturpador Chico Xavier e até tornou-se seu parceiro em alguns livros. Acreditava Herculano que desenvolver a "misericórdia" - entendida como uma espécie de permissividade - iria colocar até mesmo os deturpadores do caminho da fidelidade doutrinária a Allan Kardec.
Evidentemente, interesses comerciais no "movimento espírita" pressionaram Herculano. Os livros de Chico Xavier vendiam muito e, naquela época, já havia uma ligeira adaptação em telenovela do livro Nosso Lar, chamada A Viagem, no ar pela TV Tupi. E Herculano não entendeu a ironia que uma frase atribuída a Emmanuel e dita por Chico Xavier lhe definiu, como "o metro que melhor mediu Kardec"
Herculano, contrariando o pedagogo francês, o jornalista considerou o espírito do jesuíta, apesar de sua conduta autoritária, como de "elevada evolução moral". Sabe-se que espíritos autoritários são considerados, na literatura kardeciana, de "baixíssima evolução moral" e não o contrário. Tomado pela utopia da "fraternidade", Herculano, querendo conciliar com os deturpadores, se esqueceu de ler os livros que ele mesmo traduziu.
Em dado momento, Herculano Pires chegou a considerar que "perdiam sentido" as diferenças entre místicos e científicos no "movimento espírita" e que Kardec "defendia também a religiosidade". A perda de firmeza de Herculano foi um erro que favoreceu ainda mais os místicos, apenas isolando, no "movimento espírita", aqueles que estavam ligados diretamente a Wantuil, como Luciano dos Anjos.
A partir dessa fraqueza que gerou uma suposta "reconciliação" entre místicos e científicos, num pretenso equilíbrio entre Fé e Razão no "movimento espírita", surgiu a chamada "fase dúbia", no qual coexistiam abordagens originalmente kardecianas e outras de herança roustanguista consideradas menos controversas. Um dos pontos roustanguistas herdados foi a visão punitivista da reencarnação, defendida por Chico Xavier através de sua versão da Teologia do Sofrimento.
Podemos admitir que Herculano tivesse boas intenções, achando que poderia haver um acordo e que o "movimento espírita" pudesse recuperar, para valer, as bases kardecianas originais. Tudo isso foi em vão. As exposições "corretas" dos ensinamentos de Kardec conviviam com textos e palestras pedantes sobre assuntos científicos - que incluem momentos de mistificação esotérica, como citações de Astrologia e outros delírios "cósmicos" - e exaltações ao igrejismo religioso.
Herculano Pires acabou atraindo más energias diante dessa complacência e morreu cedo, aos 65 anos, praticamente derrotado com sua tentativa de conciliação. Chico Xavier não só continuou igrejista e deturpador como aumentou seu apetite nesta prática. O roustanguismo desaparecia no nome, mas sua herança acabou se intensificando cada vez mais, sobretudo através de romances "espíritas". Nunca Roustaing foi tão aproveitado nesse suposto processo de "recuperação doutrinária".
Enquanto isso, amigos, amigos, negócios à parte. Chico Xavier manteve desvios doutrinários que a condescendência de Herculano ingenuamente cedeu. E, além disso, após sua morte, Herculano acabou sendo "premiado" por mais uma "materialização" apoiada por Chico Xavier, aquela que simula o processo com gazes, esparadrapos, papéis e roupas todos brancos. Por sua complacência com Chico Xavier, vemos que, de tradutor correto da obra kardeciana, o jornalista acabou se reduzindo a um "cabeça de papel".
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