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A moda dos "médiuns que erram" e seu calote moral


Há um estranho modismo que é quando os "espíritas" alardeiam que os "médiuns" são "pessoas imperfeitas", são "endividados" e "erram muito na vida". O alarde ainda vem acompanhado de alegações do tipo "eles não são salvadores da pátria", "eles nunca foram santos" etc.

Além desse alarde todo soar muito estranho, pela frequência com que é usado e com o estardalhaço de suas declarações, ele revela algo bastante leviano: a suposta admissão dos erros como meio de fugir das responsabilidades que essas mesmas ações erradas exigem.

É uma espécie de carteirada por baixo. Usa-se a ideia da banalização do erro, a partir da premissa de que "todo mundo erra". Se "todo mundo erra" e o "médium também erra", então o erro, de tão banalizado, não mereceria, em tese, uma punição. É a ideia do calote moral, que é a de não querer ser punido por erros, quando estes são muito mais graves.

Os brasileiros medem os erros humanos não pela natureza dos mesmos, mas pelo status de quem erra. Se o status envolve privilégios de natureza financeira, política, empresarial, lúdica (fama) e religiosa, aquele que cometeu erro grave, incluindo, em casos extremos, crime de morte, as punições são tão brandas que, pouco depois, os "errantes" recuperam a vida de privilégios como se nada tivesse acontecido.

Outro dado que vemos é que aqueles que falam que "médiuns erram muito" declaram isso com certo nervosismo. Sabe que as críticas pesadas comprometem o privilégio religioso que garante a venda de livros e alimenta um mercado de religiosidade que, mesmo enrustido - fala-se de um mercado voltado a "socorrer os pobres e os doentes", sem que haja resultados profundos provando isso - , movimenta muito dinheiro e cria um lobby bastante fortalecido que envolve donos do poder.

Quem deve, teme, e, no caso do popular "médium" Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier, uma figura pitoresca transformada em ídolo religioso graças a um habilidoso discurso midiático que combinava apelos sensacionalistas com devoção religiosa - que de tão bem sucedido fez o Espiritismo original virar refém deste perigoso deturpador - , a blindagem chega a ser bastante obsessiva e paranoica.

O passado arrivista de Chico Xavier permitiu a sua ascensão através de muita confusão causada nos meios literários, é uma coleção de armadilhas discursivas nas quais se aproveitaram elementos do vitimismo (a mania de se achar vítima em uma situação) e do triunfalismo (a obsessão em parecer vencedor no momento da derrota inevitável), além do famigerado "bombardeio de amor", técnica perigosa de manipulação mental motivada por apelos de aparente beleza e afetividade.

Só que esse passado foi jogado debaixo do tapete. Oficialmente, seus fanáticos seguidores, uns sectários ("espíritas" declarados), outros não (pessoas que se dizem mais ou menos distanciadas do "meio espírita"), tentam dizer que Chico Xavier "errou muito no passado e depois aprendeu". Só que cometem um gravíssimo equívoco, afinal, se não fossem esses "erros inocentes", aos quais a complacência humana chega a ser exagerada, ele não teria obtido a fama que alcançou.

O primeiro impulso para sua ascensão arrivista foi a impunidade que o juiz suplente João Frederico Mourão Russell, da 8ª Vara Criminal do Distrito Federal - então o Rio de Janeiro - , dentro da famosa visão de tendenciosismo jurídico que garante a seletividade da Justiça (e que ficou famosa pelas atuações de Sérgio Moro e sua equipe da Operação Lava Jato, glorificados pelo "movimento espírita"), garantiu para o "médium" em 1944.

Houve um processo movido por herdeiros de Humberto de Campos que pecou pelo enunciado: queriam que os juízes conferissem a veracidade das supostas psicografias para que, no caso positivo, os familiares tivessem participação no lucro dos direitos autorais e, no caso negativo, que Chico Xavier e a "Federação Espírita Brasileira" indenizassem os familiares do falecido autor por apropriação indébita do seu nome.

João Frederico considerou o processo "improcedente" e alegou que as questões de direitos autorais não envolvem obras tidas como "escritas depois da morte" de um dado autor. Em outras palavras, os direitos autorais só se referem ao que a pessoa produziu em vida.

Não havia questões como literatura fake que são discutidas hoje em dia, e com o parecer de João Frederico, a única restrição dada a Chico Xavier foi que ele não poderia mais usar o nome de Humberto de Campos, daí a criação do pseudônimo "Irmão X".

Só que esse pseudônimo tinha como finalidade o uso externo, porque dentro dos "meios espíritas" a apropriação continuava. O nome "Humberto de Campos" continuava sendo evocado levianamente dentro das "casas espíritas", e até livremente em publicações relacionadas a essa religião, o que significa que a restrição legal não trouxe efeitos esperados e a apropriação indébita continuou como antes.

A obra que leva o nome de "Humberto de Campos" ou "Irmão X" claramente destoam do estilo inicial do autor maranhense. Aparentemente, só os primeiros livros, Palavras do Infinito, de 1936, e Crônicas de Além-Túmulo, de 1937, parecem verossímeis, mas mesmo assim estranhamente levaram tempo para serem produzidas, pois boa parte dos textos é creditada a 1935. Depois disso, os pastiches literários se tornaram bem mais grosseiros.

Os erros de Chico Xavier foram muitos e de extrema gravidade. Só os desvios doutrinários feitos contra o Espiritismo, como a suposição de estabelecer datas fixas para acontecimentos futuros (como a tal "data-limite" do presente ano), foram preocupantes. Allan Kardec definia esse triste hábito como de natureza de espíritos de baixo nível moral.

Portanto, não foram erros menores, desses que a gente esquece e ponto final. São erros que causaram efeitos sérios. Se hoje tivemos e temos oportunistas como Otília Diogo, Zé Arigó, Roberto Lemgruber, João Teixeira de Faria (João de Deus), foi Chico Xavier que abriu o caminho. Se, sob o nome Espiritismo, se analisa mais Horóscopo que História, o precedente veio de Chico Xavier. Se hoje qualquer um pode se passar por um morto e escrever "mensagens cristãs", foi Chico Xavier que deu o primeiro passo.

Isso é muito grave, porque hoje se fala que o sujeito "errou muito e se arrependeu". Mas, no calor do erro que estava sendo praticado na ocasião, não houve escrúpulos. Virou uma mania o suposto espírita fazer o que quiser num dia e, depois, dizer que "se arrepende" para não pagar as contas do prejuízo causado.

Sim, Chico Xavier prejudicou muita gente. Ao usurpar o nome dos mortos, se promoveu às custas da memória dos mesmos, obtendo fama e prestígio com isso e usando os mortos como carteirada para que ninguém contestasse nem investigasse os aspectos negativos do beato de Pedro Leopoldo.

Chico Xavier fez juízos de valor gravíssimos contra a gente humilde que foi assistir a um espetáculo circense que terminou num incêndio criminoso. O "médium" caluniou os amigos de Jair Presente que desconfiaram de supostas psicografias do amigo morto. Chico Xavier compareceu a homenagens promovidas pela ditadura militar que assassinava muitas pessoas honestas, humildes e trabalhadoras.

São erros graves, aos quais não dá para aceitar um pedido de desculpas. O perdão é viável, desde que não seja visto como permissividade. Mas não se pode aceitar o calote moral e sair por aí fingindo que está comemorando datas relacionadas a Allan Kardec e ficar depois exaltando Chico Xavier 9mesmo naquele prisma tendencioso do "médium imperfeito"), que comprovadamente foi o maior, o pior e o mais perigoso deturpador do Espiritismo em toda sua história.

Não se pode considerar Chico Xavier um espírita autêntico e tudo o que ele merece é o desprezo, um desprezo e um repúdio sem ódio, apenas rejeitando a sua atuação no Espiritismo, que foi, sem dúvida alguma, uma das mais desastrosas e traiçoeiras de toda a história dessa doutrina.

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