Nunca o Roustanguismo foi tão bem sucedido quanto no Brasil. O nome de Jean-Baptiste Roustaing, ou J. B. Roustaing, cujo sobrenome é considerado um palavrão por uma parcela do "movimento espírita", é desconhecido do grande público, mas seu legado foi dissolvido como açúcar em comida salgada e muitos acreditam que um roustanguismo repaginado é "espiritismo de verdade".
Como o Roustanguismo teve no Brasil seu terreno mais fértil? Porque o igrejismo roustanguiano, apesar de oficialmente renegado na retórica "espírita", foi inteiramente seguido, descontado apenas alguns pontos incômodos, como os "criptógamos carnudos" (reencarnação humana em forma de animais, plantas ou vermes) e o "Jesus fluídico" (tese de que Jesus de Nazaré nunca passou de um fantasma "materializado")?
Os brasileiros não gostam de serem informados de que o Espiritismo que aqui existe é deturpado e comete desvios doutrinários em relação à doutrina francesa que o inspirou. Acham que a roupagem ao mesmo tempo "sóbria", "despretensiosa" e "esclarecedora", que faz o aparato do "espiritismo" brasileiro, é considerada "equilibrada e saudável".
A verdade, todavia, é que os brasileiros levam gato por lebre. Talvez gostassem de lebres que miam, acham muito gracioso e simpático, mas tudo isso é falso. O que se conhece, oficialmente, como Espiritismo ou Doutrina Espírita no Brasil não tem a ver com a doutrina original de Allan Kardec, estando mais próxima de um Roustanguismo mais lapidado e menos polêmico.
Isso choca, porque ninguém oficialmente alerta isso. Nem mesmo o jornalismo investigativo. Os espíritas autênticos reclamam que a BBC Brasil aceitou de cabeça baixa as declarações da "Federação Espírita Brasileira", sem fazer um questionamento sequer, perdendo uma boa oportunidade para desmascarar o roustanguismo oculto nos postulados brasileiros.
CHICO XAVIER TINHA VERGONHA DE ROUSTAING, MAS ADAPTOU SUAS IDEIAS
Outro dado oficial a questionar é que Francisco Cândido Xavier, considerado o "maior médium brasileiro", repudiava o roustanguismo. Na verdade, ele repudiava apenas o apelo pitoresco de Os Quatro Evangelhos, por ser um católico ortodoxo que via no livro roustanguiano uma intervenção no Novo Testamento, o livro favorito do "médium", conhecido por adorar imagens de santos, principalmente Nossa Senhora da Abadia.
No entanto, Chico Xavier, em todos os mais de 400 livros lançados, adaptou fielmente o pensamento roustanguiano para a realidade brasileira, substituindo pontos polêmicos por outros mais agradáveis, como a suposição de que no "mundo espiritual" - representado pela imagem fantasiosa de Nosso Lar, considerada "realista" pelo "espiritismo" brasileiro - existem bichinhos fofinhos como cães e gatos. Talvez a "lebre que mia" esteja também aos montes nesse "paraíso espírita".
O Roustanguismo não se define apenas pelos pontos polêmicos que valeram seu repúdio. Se define, também, por inserções católicas no ideário espírita, o que fez, à primeira vista, o próprio Roustaing ser visto como seguidor de Kardec, que fez um comentário educado a Os Quatro Evangelhos: "Dissemos acima que o Livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios exarados no Livro dos Espíritos e no dos Médiuns; as nossas observações, por conseguinte, entendem com aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos fatos".
Isso à primeira vista, porque nem Kardec catolicizou suas próprias descobertas, como acusam os brasileiros. O livro O Evangelho Segundo o Espiritismo é uma análise parcial do Novo Testamento, sem a pretensão de substitui-lo e, por outro lado, questionando também alguns pontos, numa análise que põe a lógica acima da fé religiosa.
CONFLITOS ENTRE FÉ E RAZÃO E CONDENAÇÃO DO SENSO CRÍTICO
Há inúmeros desvios doutrinários do "espiritismo à brasileira" e eles são explícitos em muitos livros de Chico Xavier e Divaldo Franco, só para ditar os autores tidos como "mais renomados". A "cidade espiritual" de Nosso Lar, por exemplo, foi concebida sem o menor fundamento científico, tendo sido apenas um gancho para consolar as pessoas desafortunadas, com base na Teologia do Sofrimento defendida pelo "médium".
A ideia, portanto, é supor que a pessoa deva sofrer o pior possível na encarnação presente, enfrentando um número crescente e descontrolado de adversidades, para que, ao encerrar a vida, encontre um suposto lugar de bonança e prosperidade.
Kardec afirmou a existência de vida espiritual, mas ao mesmo tempo alertou que não há uma concepção que possa ser plausível às nossas compreensões terrenas. Isso quer dizer que o mundo espiritual não é necessariamente uma réplica da orbe terrestre. Apesar dessa constatação ter sido dada no século XIX, a Ciência até agora não trouxe uma descoberta que superasse o alerta kardeciano. Continuamos sem saber como realmente é o "outro lado".
Mas esse não é só um dos aspectos divergentes da literatura "espírita" brasileira - com um forte ranço católico, vale lembrar - em relação aos postulados originais. Um dos aspectos mais divergentes é a forma como se prega o desenvolvimento da Razão, amplo em Kardec mas bastante restritivo em Chico Xavier.
Na obra kardeciana, o pedagogo de Lyon sempre estimulou o debate aprofundado a ponto de declarar que, se o Espiritismo apresentar um dado que a Ciência refutasse de maneira lógica e com provas, que seja dada preferência ao pensamento científico e não ao espírita. Kardec estimulava o debate e ele mesmo não temia ser questionado e suas teses postas em xeque, desde que dentro do âmbito da lógica e dos argumentos e provas consistentes.
Chico Xavier fez o contrário. Ele rejeitava o senso crítico, uma postura que não deve ser subestimada. O "médium" mineiro sempre foi ultraconservador e nem de longe pode ser considerado o suposto "ativista progressista" que muitos acreditam ter sido ele, sem apresentar um fundamento teórico para tais atribuições.
Em toda sua obra, Xavier condenava o ato de questionar e contestar os problemas. Para piorar, falava-se em "tóxico do intelectualismo" como um termo que discrimina o senso crítico, quando ele chega a pontos considerados "desagradáveis" para o "movimento espírita". Isso contradiz a suposta apreciação do Conhecimento que não passa de falácia na obra de Chico Xavier, mais voltada ao obscurantismo da fé religiosa, sob o verniz da "fé raciocinada".
Mesmo o termo "não censures" é um eufemismo invertido, que não reprova a Censura propriamente dita, como na ditadura militar (que Chico Xavier apoiou com gosto), mas o senso crítico e a reprovação dos abusos do poder conservador e de suas ideologias associadas.
É PRECISO FIRMEZA EMOCIONAL
Para admitir que o Espiritismo no Brasil se tornou, na verdade, um Roustanguismo que Chico Xavier adaptou para o contexto brasileiro, é necessário uma certa firmeza emocional para renunciar a dogmas motivados pela fascinação obsessiva, uma série de dissimulações que mascaram o fanatismo em torno de Xavier com alegações que vão à "consciência de imperfeições", à falsa defesa da lógica e às alegações demagógicas de falso equilíbrio.
A imprensa deveria esclarecer as pessoas de que o Espiritismo é deturpado no Brasil. A imprensa investigativa não pode sucumbir à propaganda, fazendo matérias como a da BBC Brasil, que mais parecem releases da FEB, tamanha a vexaminosa preocupação em celebrar mais o carisma do deturpador Chico Xavier.
Seria necessário sair da camisa de força do misticismo religioso e de uma visão fantasiosa e exageradamente religiosa da filantropia - que Chico Xavier nunca fez, porque sua "caridade" era, na verdade, obra de terceiros (fala-se de gente encarnada, vale lembrar) - para termos coragem de ver a deturpação que está por trás do Espiritismo no Brasil.
Teremos, com isso, a coragem de arrancar as orelhas da "lebre que mia", abrindo mão da zona de conforto de nossas resignações, que se tornam cada vez mais estúpidas. Ultimamente anda-se falando dos "médiuns que erram", incluindo o próprio Chico Xavier, mas continua-se idolatrando eles com o mesmo fanatismo de antes. De que adianta tirar os "médiuns" do pedestal se há muitos altares para se colocarem esses ídolos da fé nada racional dos "espíritas" brasileiros?
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