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"Fé raciocinada" é desculpa para permitir o obscurantismo "espírita" brasileiro



Interpretando de maneira leviana e distorcida os ensinamentos de Allan Kardec, o "espiritismo" brasileiro utiliza uma conhecida falácia, a da "fé raciocinada", que garante a prevalência do seu engodo de ideias, que misturam alguns conceitos científicos kardecianos com ideias igrejeiras herdadas por Jean-Baptiste Roustaing, das quais Chico Xavier adaptou para o contexto brasileiro.

Diz-se que a "fé raciocinada" é, ao mesmo tempo, a fé religiosa que encontra respaldo na Razão e o cientificismo que não contraria a fé. É uma falácia, uma retórica do falso equilíbrio entre Fé e Razão, na qual o cientificismo é tolerado quando não ameaça os interesses da fé.

O "espiritismo" brasileiro é uma grande e engenhosa coleção de falácias das quais desvendá-las exige uma habilidade e uma frieza de espírito (olhem o trocadilho) para que o senso crítico não esbarre nos apelos de fascinação obsessiva que a mística de Francisco Cândido Xavier exerce sobre as pessoas, ele que era um habilidoso hipnotizador de massas, apesar de seus problemas de visão num dos olhos.

É necessário muita perseverança e muito senso crítico, e não raro os questionadores e combatentes da deturpação espírita fraquejam no meio do caminho. Mesmo o jornalista José Herculano Pires fraquejou diante da ilusão de que poderia acolher os "médiuns espíritas", de formação roustanguista, no trabalho de recuperação das bases doutrinárias.

E também Humberto de Campos Filho, o produtor de TV cujo pai foi usurpado pela "psicografia" de Chico Xavier, foi por este assediado em 1957, desfazendo o lógico ceticismo que o produtor e também jornalista tinha das "obras mediúnicas", substituído por uma credulidade motivada pelas seduções do "bombardeio de amor" trazidas pelo traiçoeiro "médium" mineiro.

Há muita vigilância porque se acredita em práticas do "espiritismo" brasileiro que parecem sublimes, mas não são: a "fé raciocinada", que permite a mistura do joio com o trigo das ideias cientificistas kardecianas e do igrejismo de Chico Xavier, e a suposta "caridade" que se equipara ao Assistencialismo, de baixos resultados sociais e que não resolve o problema da pobreza de maneira corajosa. É mais uma "caridade" para promover adoração ao "benfeitor".

A "fé raciocinada" conduz o pedantismo de muitos palestrantes e jornalistas do "movimento espírita", que, ao evocar assuntos científicos e intelectuais, o fazem de maneira simplória e, embora parcialmente correta, cheia de muita mistificação, sobretudo quando mistura fenômenos da Física e da Química com Astrologia e devaneios messiânicos aqui e ali.

No caso das "profecias da data-limite" de Chico Xavier, um engodo sensacionalista cheio de erros de abordagem sociológica, geológica e geográfica, cria-se uma gororoba na qual se misturam perspectivas igrejeiras - a "formação" da tal "Pátria do Evangelho" - e alegações de ordem política e econômica, como a suposição de que, no projeto do "Coração do Mundo", a Petrobras se tornará uma empresa forte e autônoma. Onde, meus amigos, se há a intenção de extinção gradual da empresa com a suposta "quebra de monopólio do petróleo" clamada pelas multinacionais do setor?

A "fé raciocinada" traz incoerências. Afinal, o termo "raciocinada" não procede, pois, em termos semióticos, indica um processo "pronto" e "finalizado", e o menos incorreto seria "fé raciocinante", se não fossem os desvios doutrinários que no Brasil se faz aos ensinamentos de Allan Kardec, porque raciocinar é um processo que não se conclui.

Assim, vemos que a retórica da "fé raciocinada" expressa seu verdadeiro propósito: a de evitar o debate sobre a fé religiosa e a de supor que ela se reveste de um respaldo intelectual. É uma desculpa para permitir o obscurantismo "espírita" no Brasil, porque o misticismo igrejista se supõe dotado de motivações "científicas" das quais se "dispensa" o debate e o questionamento que, se forem exercidos, serão maldosamente creditados como "tóxico do intelectualismo".

Com isso, o "espiritismo" brasileiro se revela contrário à verdadeira natureza do Conhecimento, e coloca, confirmadamente, as ideias de Chico Xavier em contronto com as de Allan Kardec, porque, enquanto o pedagogo francês defende a amplitude do debate e do senso crítico, mesmo pondo em risco a validade do Espiritismo, o "médium" mineiro dizia para nunca questionarmos. Espiritismo, da forma que é feita no Brasil, não tem o verdadeiro compromisso em defender a Lógica, em toda sua natureza, mas a mistificação obscurantista da fé medieval.

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