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Nem os espíritas autênticos deram ouvidos a Erasto



Infelizmente, o legado do Espiritismo original está todo dominado pelos deturpadores, que com seu igrejismo medieval, manipulam de forma tendenciosa as ideias de Allan Kardec, reinterpretando-as de maneira leviana, distorcida, mas falsamente "equilibrada" e pretensamente "positiva".

Esse domínio é preocupante, e o chamado "movimento espírita" se empenhou para desnortear a Doutrina Espírita original a ponto dela ser, hoje, uma repaginação do Catolicismo medieval, investindo num processo perigoso de desenvolvimento do projeto "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", que é a combinação das restaurações do Catolicismo da Idade Média com o Império Romano (ou, ao menos, o Império Bizantino, antigo Império Romano do Oriente).

Não nos iludamos com as promessas de uma "conduta fraterna" e de "compreensão misericordiosa e tolerante" da tal "pátria do Evangelho". Quando surgiu o Catolicismo, o seu fundador, o imperador romano Constantino, também fez as mesmas promessas de "religião fraterna e unificadora", e o resultado foi o contrário: uma religião dominadora, intolerante, punitivista, sanguinária e obscurantista.

O que conhecemos no Brasil como Espiritismo não é muito diferente e sinaliza aspectos bastante macabros: seu moralismo, inspirado de forma explícita mas nunca assumida pela Teologia do Sofrimento, é punitivista e recomenda aos aflitos aguentar as desgraças em silêncio ou a desenvolver sacrifícios torturosos para vencer na vida.

Com isso, vemos coisas aberrantes como "reajustes espirituais", uma herança que os brasileiros pegaram de J. B. Roustaing, com a comparação da reencarnação a uma sentença criminal. O que pode surpreender e chocar é que os "espíritas" de uma segunda geração que viveria sob o signo da "pátria do Evangelho" começariam a usar a tese dos "resgates coletivos" para exterminar os hereges que estariam impedindo a consolidação da "Doutrina Espírita" brasileira a se impor no mundo.

As palavras são traiçoeiras e, por isso, as promessas "fraternas", "pacifistas" e "tolerantes" podem se converter numa atitude de repressão e intolerância, porque o problema não está na doutrina prometer fraternidade e paz. Todo movimento dominador, mesmo o nazi-fascismo, sempre apelou para um discurso fraterno, quando o foco são seus pares e todos que concordam com o respectivo movimento.

O problema está no outro. O "espiritismo" brasileiro, que pede aos sofredores aguentarem calados as adversidades da vida, não liga para o sofrimento alheio. A sua propaganda de fachada fala em "caridade", "atendimento fraterno" etc. Tudo como isca para atrair sofredores. Mas quando se está dentro de um "centro espírita", o que os atendentes (chamados "tarefeiros") dizem para o sofredor é "se vire, nada cai do céu, se sacrifique o máximo que puder, metendo a cara na vida".

ATÉ OS ESPÍRITAS AUTÊNTICOS ESTÃO DESINFORMADOS

O espírita que mais manteve fidelidade ao texto kardeciano original, o jornalista José Herculano Pires, tem suas virtudes admiráveis. Mas sua luta pela fidelidade doutrinária ao Espiritismo francês pecava por uma certa complacência aos deturpadores e a certos desmandos da "Federação Espírita Brasileira" que estavam longe do terreno roustanguista.

Herculano Pires, por exemplo, defendeu a tese de que Amauri Xavier, sobrinho de Francisco Cândido Xavier - popularmente conhecido como Chico Xavier - , era "realmente médium", quando a consciência do rapaz já alertava que não era. Amauri não cansava de dizer que criava as coisas de sua mente, não tinha sensação de que as mensagens vinham "do outro lado", eram meras imitações de estilos literários baseados no que editores da FEB orientaram e ajudaram Chico Xavier a fazer.

É compreensível que Herculano Pires era amigo de Chico Xavier e tinha um sentimento conciliador, mas isso causou sérios problemas, em diversos aspectos. Pires acabou sendo omisso diante de muitos aspectos da deturpação espírita e atribuiu ao espírito Emmanuel - que apresenta caraterísticas definidas pela literatura kardeciana como as de um "espírito de baixa evolução moral" - como sendo "de elevada evolução moral".

O mais grave problema é que a utopia conciliadora de Herculano Pires, que acreditava que Chico Xavier ou mesmo Divaldo Franco (que já foi criticado pelo jornalista em uma carta) iriam colaborar na recuperação das bases doutrinárias kardecianas. Só que a promessa dos dois "médiuns" não se cumpriu.

Chico e Divaldo se tornaram tão ou mais igrejistas do que antes. Embora Divaldo Franco, meio que da boca para fora, expusesse "corretamente" os postulados espíritas em suas participações em programas de televisão, suas palestras públicas e seus livros eram dotados de pregações abertamente igrejistas e mistificadoras. Chico Xavier, então, que sempre foi um católico ortodoxo, sempre manteve seu igrejismo, que até se intensificou dos anos 1970 até suas derradeiras obras.

Os espíritas autênticos também não adotaram posturas questionadoras quanto ao caráter duvidoso das "psicografias". Virou uma visão corrente de que a "psicografia" creditada a Humberto de Campos ou Irmão X é "autêntica", mesmo quando críticos literários apontam sérias irregularidades que comprovam o caráter fraudulento de tais obras.

ERASTO EXIGIU FIRMEZA NO COMBATE À DETURPAÇÃO

Em várias passagens, o espírito Erasto, em mensagens aproveitadas pela literatura kardeciana, pedia para que se combatesse os inimigos internos do Espiritismo com muita firmeza. Isso pressupõe um espírito de ruptura. Os espíritas autênticos nunca romperam completamente com os deturpadores e achavam que a conciliação com eles traria uma trajetória mais equilibrada da doutrina.

Relativizações ocorriam em todo sentido. Nas redes sociais, um internauta disse: "Chico e Divaldo deturparam o Espiritismo, mas sua mediunidade é 100% confiável (sic)". Outras pessoas falam coisas do tipo "pelo menos eles fizeram caridade (sic)", "eles erraram muito, mais aprenderam (sic)", entre outras desculpas.

Não há um espírito de ruptura nos brasileiros. Se até o feminismo brasileiro tenta compactuar com o machismo  - com a dual opção da mulher desenvolver inteligência e criatividade mas se sujeitar a ter um marido rico e poderoso ou a mulher seguir o estereótipo machista da "mulher-objeto" e ser dispensada até de ter um namorado - , rádios de rock são montadas sem romper com a linguagem debiloide das FMs pop e as esquerdas acolhem facilmente paradigmas culturais de direita, a postura dos espíritas autênticos é compreensível.

O Brasil é o país onde se aposta na reconstrução do galinheiro pelas raposas. Temos uma visão romântica de pedir àquele que destruiu um edifício ou arruinou sua causa que reconstruísse o que foi destruído e reconstituísse o que foi arruinado. Esse é um paradigma próprio do imaginário religioso conservador, que combina disciplina e perdão, mas não tem muita aplicação prática.

O que se nota é que existem raposas oportunistas que "adoram" reconstruir o galinheiro. Nos esquecemos que os oportunistas que destruíram uma causa se sentem em vantagem ao serem chamados para reconstrui-la, pois em muitos casos o arrivismo faz com que os desordeiros de ontem estabeleçam seu vínculo justamente à causa que quiseram destruir.

A complacência emocional dos espíritas de verdade com a ação dos deturpadores e a sua "psicografia" de mentirinha só piora as coisas. Não temos pesquisas sérias sobre fenômenos paranormais porque os farsantes da pretensa mediunidade - conhecida pelo neologismo pejorativo de "mentiunidade" - supõem oferecer o "produto pronto", "imperfeito" mas embalado para consumo.

Não negamos os esforços, aqui e ali, de uma Dora Incontri, de um Sérgio Aleixo, que herdaram o trabalho de Herculano Pires no combate à deturpação. Mas até eles esbarram no meio do caminho quando se há uma relativização ao trabalho mesquinho e traiçoeiro de Chico Xavier e companhia, por causa da viciosa emotividade religiosa, que em algum momento pega desprevenidos até mesmo os mais enérgicos combatentes.

Foi com essa preocupação que a mensagem de Erasto de Paneas, lançada no século XIX mas dotada de surpreendente atualidade, pediu para haver firmeza para combater a deturpação espírita. Não se pode deixar-se seduzir pelo sorriso mole de Chico Xavier idoso, cercado de coraçõezinhos, céu azul, mensagens supostamente amorosas, porque isso é uma grande armadilha.

É como disse Erasto, no Capítulo 20 de O Livro dos Médiuns, "Influência Moral dos Médiuns", no item 230:

"Certamente eles (os médiuns levianos) podem dizer e dizem às vezes boas coisas, mas é precisamente nesse caso que é preciso submetê-las a um exame severo e escrupuloso. Porque, no meio das boas coisas, certos Espíritos hipócritas insinuam com habilidade e calculada perfídia fatos imaginados, asserções mentirosas, como fim de enganar os ouvintes de boa fé".

Faltou-se o exame severo e escrupuloso e sobrou resignação e complacência, deixando que nossos sofredores aguentassem viver suas desgraças calados, sonhando com a fantasiosa cidade de Nosso Lar, concebida sem o menor fundamento lógico. Em dado momento, os combatentes da deturpação espírita brasileira falharam pela falta de pulso firme.

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