CENA DE KARDEC - O FILME, QUE APOSTA NO MANIQUEÍSMO ENTRE CATÓLICOS E ESPÍRITAS PARA FORJAR "AUTENTICIDADE" NO DETURPADO ESPIRITISMO BRASILEIRO.
É necessário ter muita cautela quando o "espiritismo" brasileiro fala de episódios sobre desavenças entre sua doutrina e o Catolicismo. É muito comum haver tais abordagens que tentam dar a falsa impressão de que a doutrina igrejeira honra o Espiritismo original, forjando pretensa fidelidade doutrinária.
Espiritismo, da forma que se faz no Brasil, é catolicizado. Primeiro, por questões de sobrevivência, buscando se aproximar da Igreja Católica para evitar as batidas policiais que reprimiam os "centros espíritas" no passado. Segundo, por opção própria, através da influência de Francisco Cândido Xavier, que traduziu o pensamento de J. B. Roustaing para o contexto brasileiro.
Muitos não percebem isso porque o hábito católico se tornou tão "fora da religião" e isso se deve pelo fato dos brasileiros médios serem "católicos não praticantes". Mas, na verdade, a perspectiva religiosa é que ultrapassou os limites da religião, a ponto de medidas relacionadas e assuntos banais no âmbito da cultura e da mobilidade urbana serem vistos com entusiasmo digno de beatos religiosos.
No Rio de Janeiro, acusa-se que medidas como a pintura padronizada nos ônibus - que deixam diferentes empresas de ônibus submetidas a um único visual - e uma suposta "vocação" de uma emissora de rádio, a Rádio Cidade 102,9 FM, ao rock, foram vistas por seus interessados como se fossem "milagres divinos", tamanho o deslumbramento que eles se manifestaram nas redes sociais, como se estivessem reagindo à ressurreição de Jesus Cristo.
É a chamada "religiosização da vida", um combustível para a pós-verdade, onde a fé religiosa ultrapassa os limites da religião e a forma de ver a vida passa a ser conduzida por uma perspectiva similar à da beatitude religiosa, na qual uma coisa ou fenômeno, geralmente sem muita relevância, medíocre ou, em certos casos, cheio de desvantagens e pontos nocivos, é aceita e apoiada com o mesmo fervor com que beatos adoram santos, com mais emoção do que razão.
Diante disso, os brasileiros que "não praticam o Catolicismo", na verdade, jogam o modus operandi da beatitude católica a diversos âmbitos da vida, e isso faz com que "ser católico" tenha uma compreensão aleatória, como se tal opção católica gerasse pessoas sem uma forma religiosa definida. É como se a opção católica fosse tão disforme quanto um gás.
"CATOLICIZAÇÃO" DO ESPIRITISMO, NO BRASIL, NÃO É SAUDÁVEL
Com isso, muitos imaginam que a "catolicização" do Espiritismo feita no Brasil é um processo "saudável". Acreditam que as críticas que supostamente se voltam à "vaticanização da Doutrina Espírita" se limitam apenas aos rituais pomposos que se comparam aos católicos propriamente ditos.
Só que as queixas contra a Igreja Católica são simplórias e superficiais, e mostram eventos maniqueístas diversos, seja para reforçar o vínculo de um Espiritismo deturpado no Brasil e as bases doutrinárias originais. Supervaloriza o maniqueísmo entre Allan Kardec e os católicos, como um gancho para forçar o vínculo com o Espiritismo catolicizado no Brasil.
E isso se dá ao mesmo tempo em que se supervaloriza, por outro lado, o aparente conflito que Chico Xavier teve com a Igreja Católica, que não se pode comparar com o sofrido com Kardec, por ser de natureza muito diferente. Afinal, Chico Xavier sempre foi católico, e dosmais ortodoxos, pois, apesar de ser hostilizado por católicos reacionários como Gustavo Corção, ele compartilhava das mesmas crenças, só havendo a suposta paranormalidade como divergência maior.
Há uma diferença entre Kardec, que era um cientista, divergir com os católicos diante de descobertas feitas no âmbito da Lógica, e Chico Xavier, com seu igrejismo pitoresco divergir com os católicos em pequenos pontos. Além disso, a maior hostilidade da Igreja Católica com Chico foi que suas supostas psicografias eram reconhecidamente fake e os católicos foram os que mais denunciaram isso.
O que os brasileiros não percebem é que a "catolicização do Espiritismo" foi mais grave não da parte de uns palestrantes "espíritas" de menor expressão, alvo de críticas maledicentes de palestrantes um pouco mais badalados, para evitar concorrência nas vendas de livros e de seminários.
Dessa forma, nomes como Alamar Régis Carvalho e Richard Simonetti dizem reprovar a "catolicização do Espiritismo" visando afastar concorrentes que carregaram demais nos apelos religiosos para levar vantagem nas suas exposições e escritas.
No entanto, a "catolicização" se torna mais explícita em nomes considerados "renomados" nos seus meios doutrinários, como Chico Xavier e Divaldo Franco. Seu igrejismo é extremamente carregado, cheio de dogmas ultraconservadores, herdados do Catolicismo jesuíta que prevaleceu no período colonial, e que defendia dogmas e práticas medievais.
Mas o prestígio dos dois "médiuns" garante a blindagem, e ninguém lhes acusa de terem "vaticanizado" o Espiritismo, apesar do igrejismo escancarado dos dois. Em vez disso, usa-se a desculpa de que os dois "apenas manifestaram entusiasmo demais" com as origens católicas em sua formação social.
Usa-se também o pretexto das "tradições religiosas brasileiras" como pretexto para permitir a "catolicização" do Espiritismo, quando elas estão nas mãos de Chico Xavier e Divaldo Franco, sendo neste caso manifesto pelo pretexto da "liberdade religiosa" e das "saudáveis licenças à fé religiosa que consola os aflitos".
Só que quem imagina que o "catolicismo" de Chico e Divaldo é inofensivo, se engana. Os dois cometeram traições doutrinárias vergonhosas, das quais supor "cidades espirituais" sem fundamento teórico algum, estabelecer datas precisas para acontecimentos futuros (prática rejeitada por Kardec) e investir em "positivas" discriminações sociais com "crianças-índigos" são apenas alguns dos aspectos mais conhecidos.
Os erros cometidos por Chico Xavier e Divaldo Franco não foram acidentais, sua "catolicização" nunca foi uma questão de "entusiasmo demais" e o propósito dos dois foi mesmo de desfigurar a Doutrina dos Espíritos, transformando-a num pastiche do Catolicismo, no qual ideias medievais descartadas pelos católicos foram recuperadas. A ideia dos "resgates coletivos", por exemplo, remete a um moralismo punitivista que só fazia sentido na Idade Média.
QUEM É "MAIS CATÓLICO"?
O maniqueísmo que se monta entre Catolicismo e Espiritismo no Brasil é um truque que visa alguns interesses estratégicos. O principal deles é evitar as acusações de "catolicização" no "espiritismo" brasileiro, pela desculpa de que a doutrina brasileira nunca iria assimilar elementos da religião "rival".
Mas há também um outro aspecto, que são as disputas externas e internas que envolvem figurões "espíritas", que devem ser consideradas como um artifício para usar o "conflito com os católicos" como um meio de fortalecer o prestígio de alguns dos astros do "espiritismo à brasileira", como os próprios Chico Xavier e Divaldo Pereira Franco.
No que se diz às disputas externas, trata-se de uma tentativa de desqualificar a Igreja Católica na defesa de dogmas e rituais que supostamente os "espíritas" não compartilham. Por trás disso, há uma intenção do "movimento espírita", nunca devidamente assumida - pois os "espíritas" se dizem "fraternos" e "religiosamente tolerantes" - , de desqualificar os católicos e dar vantagem ao "espiritismo à brasileira", tido como religião "despretensiosa e racional".
No que diz às disputas internas, trata-se de um meio de dirigentes, palestrantes e "médiuns" de maior projeção depreciarem concorrentes, que são acusados de "vaticanizarem" o "espiritismo" brasileiro. A adoção de dogmas católicos é um meio de tornar os livros e palestras mais vendáveis, através das promessas de consolação e salvação humanas, e os palestrantes e escritores emergentes usam desse artifício para impulsionar o sucesso de suas obras.
Portanto, em ambos os casos, o que há é o uso da "catolicização" como meio de desprezar e enfraquecer concorrentes. Apesar disso ser explícito e digno de provas, os "espíritas", na sua habilidade falaciosa, sempre desmentem. Eles costumam dizer algo do tipo:
"Nós nunca nos impomos como religião, não temos a verdade nas nossas mãos e acolhemos nossos divergentes com muito carinho e respeito de irmãos, aceitando a livre expressão da religião como meio de difundir a Fé em Deus, cada um da forma que lhe achar melhor".
O discurso é muito bonito, mas falso. A falsidade do "espiritismo à brasileira" precisa ser analisada, mas o chamado "balé das belas palavras", que anestesia até aqueles que deveriam investigar as irregularidades do "movimento espírita", faz todos ficarem tranquilos, diante de um suposto Espiritismo catolicizado até a medula.
Por isso devemos tomar muita cautela quando se fala no maniqueísmo entre católicos e espíritas, porque isso é um gancho para proteger os interesses dos dirigentes "espíritas" e garantir a eles lucro e poder através de uma suposta desqualificação dos católicos, que, com todos os seus defeitos, são muito melhores que os "espíritas" brasileiros, por, pelo menos se adaptarem aos novos tempos.
Em contrapartida, o "espiritismo" no Brasil, que finge não ter traído Allan Kardec, se volta ainda mais para a herança do Catolicismo medieval que, através de jesuítas como Manuel da Nóbrega - que "voltou" ao imaginário popular como Emmanuel - , vigorou durante muitos anos no período colonial. Espiritismo é apenas um rótulo para o Catolicismo medieval se repaginar, escondido numa "nova religião".
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