A recente moda dos seguidores de Francisco Cândido Xavier, Divaldo Pereira Franco e outros em falarem de "médiuns imperfeitos" é uma grande leviandade que interpreta mal o que Allan Kardec dizia a respeito da imperfeição dos médiuns. Ainda falaremos dos chamados "anti-médiuns" brasileiros que se tornam um problema, porque os "médiuns" que existem no Brasil fogem da natureza propriamente intermediária da função. Fica para outra oportunidade.
Aqui, diremos o quanto é preocupante esse estranho carnaval de pessoas que parecem enfatizar, de maneira muitíssimo estranha, a "possibilidade de errar" dos supostos médiuns brasileiros. Tudo parece um refrão dito por várias pessoas, das mais diversas, que soa mais como uma complacência ao erro do que um indício de posições realistas ou de autocrítica.
A retórica dos "médiuns imperfeitos" surge quando um suposto médium é desmascarado por algum escândalo. Desde os escândalos de Chico Xavier até os recentes escândalos envolvendo Divaldo Franco - que em 2018 fez comentários reacionários em uma palestra em Goiás - e João Teixeira de Faria, o João de Deus - acusado de crimes diversos - , a "imperfeição dos médiuns" virou um estranho marketing que seguidores e simpatizantes do "espiritismo" brasileiro adotam nos últimos tempos.
"GENTE COMO A GENTE": CANELADAS E "CARTEIRADA POR BAIXO"
A alegação dos "médiuns imperfeitos" segue a cartilha da mediocridade humana, na qual o senso de humanismo é nivelado pela ideia de imperfeição, muito mal compreendida. Afinal, trata-se muito mais de um ideal de complacência do erro do que de qualquer consciência da real imperfeição humana.
Isso revela até um grave preconceito. A falácia do "gente como a gente" se sustenta nesse rol de ideias no qual os "médiuns imperfeitos" são apenas um exemplo religioso da mania de "errar muito e não sofrer as consequências desses erros", criando um estranho "orgulho de ser errado" que trata como "natural" a sordidez humana.
Por trás dessa visão preconceituosa de que "ser humano é errar muito", transforma-se o erro humano, que deveria ser uma coisa acidental, como uma apologia à sordidez, à mediocrização, ao arrivismo e até mesmo ao crime. A ideia de "gente como a gente" acaba dialogando com os mitos do "jeitinho brasileiro" e do "complexo de vira-lata" que nivelam a realização humana através das chamadas "caneladas", que é uma espécie de impulso que faz as pessoas cometerem erros sucessivos e graves.
A falácia do "gente como a gente", incluindo a sua forma "espírita" dos "médiuns falíveis", cria uma zona de conforto que faz a irresponsabilidade humana ser socialmente aceita. Pior: a natureza do erro não é devidamente compreendida e o discurso da "consciência de que todos erram" acaba virando desculpa para certas pessoas cometerem erros graves e até crimes e não serem punidas por isso.
É por isso, por exemplo, que a falácia do "gente como a gente", dentro de um país confuso como o Brasil, fez a nossa Justiça criar um padrão de impunidade que permite que pessoas que cometeram crimes diversos, inclusive os de morte, fossem liberados de qualquer punição, seja a prisão ou alguma limitação (como prestar serviços gratuitos ou perder algumas regalias), mesmo diante dos efeitos danosos causados.
O prestígio religioso garantiu a impunidade de Chico Xavier, no caso da usurpação do nome Humberto de Campos em supostas psicografias. O processo judicial movido por herdeiros do autor maranhense foi subestimado pela Justiça seletiva, que ignorou que as obras apresentam falhas estilísticas que apontariam fraudes que apelassem para o banimento das "psicografias" no mercado.
Não fosse a blindagem religiosa, Chico Xavier teria sido preso e os livros "psicográficos" teriam sido definitivamente retirados das livrarias. Essa seria a medida natural do processo. Em vez disso, a Justiça seletiva, vendo o status religioso do suposto médium, julgou o processo dos herdeiros de Humberto "improcedente" e deu sinal verde para as "psicografias" serem publicadas, diante de uma questão confusa sobre direitos autorais, que coloca o "médium" como "responsável autoral", mesmo usando nomes de terceiros.
A única condição foi publicar os livros sob o nome de "Irmão X", criado por sugestão de Antônio Wantuil de Freitas, presidente da FEB e dublê de empresário de Chico Xavier (à maneira de um empresário de um astro pop).
Mas as obras creditadas ao "espírito Humberto de Campos" continuaram circulando até hoje, com cópias disponíveis de graça na Internet e até em doações de livros nas ruas. E o mais grave é que o nome "Irmão X" é usado apenas para uso externo, evitando complicações jurídicas, porque dentro dos "meios espíritas" o nome de Humberto continua sendo evocado como se seus adeptos acreditassem que foi o autor maranhense quem escreveu essas obras igrejeiras.
Chico Xavier cometeu erros gravíssimos, se envolveu em preocupantes escândalos, o que derrubaria por completo qualquer mérito de adoração a ele, por mais singela e realista que fosse. É um sujeito que deveria receber o repúdio e o desprezo da sociedade, por ter uma trajetória de muita confusão e incidentes que deveriam ser incômodos, se o Brasil fosse um país menos ignorante e menos apegado às paixões religiosas.
A falácia dos "médiuns imperfeitos" só serve, neste caso, para proteger aberrações como Chico Xavier, que não teve a trajetória coerente de Jesus de Nazaré e Allan Kardec, aos quais o suposto médium é comparado. Estes tiveram uma trajetória de honradez e coragem, enquanto Chico Xavier teve uma trajetória marcada por atos desonestos e muita confusão.
Se Chico Xavier é considerado "uma grande figura humanista" no Brasil, é por causa da ignorância, das mitificações e mistificações que envolve o povo brasileiro, sempre marcado por uma grande confusão de sentimentos e uma relação muito mal resolvida do que é certo ou errado, do que é lógico ou absurdo, do que é relevante ou não.
E isso faz do Brasil um paraíso de arrivistas, criminosos, corruptos, gente traiçoeira. Criou-se uma complacência ao erro, uma apologia à falsidade humana, na qual os próprios brasileiros, mesmo os que parecem bons e dignos à primeira vista, escondem seus sentimentos ocultos, suas neuroses, seus preconceitos e sua ignorância.
A falácia da "gente como a gente" como uma permissividade do erro faz até mesmo que criminosos ricos, ao deixarem a cadeia, retomem os privilégios abusivos aos quais não têm dignidade de manter sequer quando não cometeram crimes mais graves, como assassinato. E ver que, mesmo com esse crime de morte, privilegiados retomam integralmente suas vantagens sociais, a ponto de feminicidas terem mais chance de conquistarem novas namoradas do que muitos homens com personalidade mais digna, é bastante assustador.
No caso dos "médiuns espíritas", a imagem de imperfeição e falibilidade lhes desmascara, porque eles acabam mostrando que não merecem a menor adoração. O fato deles serem ou terem sido simpáticos e gentis é tão banal quanto alguém beber um copo de água, e os políticos mais cafajestes também têm seus momentos de aparente generosidade.
Diante disso, superestima-se as pequenas gentilezas de Chico Xavier e a suposta "caridade" feita de maneira preguiçosa - reservar, quase "mecanicamente", o lucro da venda de livros para instituição de caridade, coisa que qualquer Bingo da Sorte faz - e sem efeitos sociais profundos. A ideia de que "Chico Xavier também erra" é mais uma complacência a seus erros e uma forma de evitar responsabilizá-lo pelos seus piores atos, diante da imagem banalizada do erro humano, hoje manifesta pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, seus filhos e sua equipe ministerial.
A ideia dos "médiuns imperfeitos", portanto, é mais uma desculpa para a adoração obsessiva a eles, e a suposta consciência de erros e imperfeições não contribui em coisa alguma para o fortalecimento do Espiritismo, até porque muitos desses erros estão relacionados a desvios doutrinários que haviam sido alertados por Kardec em sua bibliografia. Portanto, de que adianta dizer que "médiuns também erram" se eles continuam sendo tratados como semi-deuses?
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