Na breve primavera progressista dos governos do Partido dos Trabalhadores, entre 2003 e 2016, as forças progressistas de esquerda se deixaram iludir por fenômenos e movimentos conservadores, sobretudo no âmbito cultural, religioso e lúdico.
A visão esquerdista ainda estava muito presa no âmbito político e econômico, que conduzia as atividades sindicais, e o âmbito midiático-jornalístico, que conduzia as análises acadêmicas e dos próprios cronistas da imprensa esquerdista.
Ninguém poderia imaginar que fenômenos "extremamente populares", em tese vinculados ao cotidiano do povo pobre, podem representar interesses tão fortemente conservadores, caraterísticos da direita brasileira. Só recentemente se soube que um dos veículos que mais divulgaram essa "cultura demasiado popular", o SBT de Sílvio Santos, tornou-se também o mais entusiasmado reduto do bolsonarismo, ideologia de extrema-direita representada pelo hoje presidente Jair Bolsonaro.
"Funk" e "espiritismo", embora antagônicos no aparente apelo catártico, com o primeiro enfatizando o sexo e a libertação dos instintos e o segundo enfatizando a moral e os devaneios da fé religiosa, enganaram as esquerdas, que não souberam entender seus aspectos principais.
A narrativa do "funk", que fazia o povo pobre ficar preso na sua simbologia de pobreza social, ainda que pudesse receber dinheiro e ter reivindicações parcialmente atendidas nas favelas - que o "funk" fazia deixar de serem problemas habitacionais, como sempre se pensou desse tipo de construção suburbana, para se tornarem "paisagens de consumo" e cenários ufanistas - , enganou as esquerdas porque estas não pensaram na delimitação espacial do discurso funkeiro.
Nele, as esquerdas imaginaram que não havia uma delimitação rigorosa de espaço do povo pobre, que apenas apelava para "entrar" nos espaços das elites por mera exposição e consumismo. Ou seja, os funkeiros queriam ir para as praias da Zona Sul e para os ambientes como shopping centers e desfiles de moda, não pelo direito natural do povo pobre de frequentar tais ambientes, mas como forma de consumismo social e como meio de forçar o público intelectualizado a aceitar a ideologia do mau gosto representada pelo "funk".
As esquerdas não imaginaram o aspecto conservador que o "funk" tinha: seu rigor estético no som e no comportamento, associados a uma simbologia valorativa de caráter inferior, que as elites conservadoras atribuem ao povo pobre. Uma simbologia que envolve desde a produção "musical" precária, sem músicos, nem melodias e nem arranjadores, até a erotização da mulher, um valor machista fantasiado de "feminismo", apesar da evidente objetificação do corpo feminino.
O objetivo disso tudo era prender o povo pobre nas favelas e fazê-lo refém de baixos valores morais que seriam depois combatidos pelo discurso da direita. Especialistas consideram que a infiltração de nomes e instituições funkeiras no ativismo de esquerda (Furacão 2000, APAFUNK, Liga do Funk) é comparável à que o Cabo Anselmo, estranho ativista surgido na crise do governo João Goulart e, depois, revelado agente do governo dos EUA, havia sido em 1963-1964.
É, portanto, um esquerdismo falso, montado por funkeiros que se diziam "esquerdistas convictos" mas que estavam a serviço de executivos da mídia hegemônica e patrocinadores multinacionais, usando o "funk" como cortina-de-fumaça para evitar discutir problemas fundamentais no âmbito da Educação, das relações trabalhistas, da reforma agrária e do combate a problemas como a privatização de estatais.
E se no "funk" as esquerdas não perceberam que seu discurso queria aprisionar os pobres nas favelas - para depois a direita armamentista eliminá-los gradualmente por "balas perdidas" ou pelo "combate ao banditismo" - , no "espiritismo" as esquerdas não entenderam que o conceito de "vida futura" era bem mais externo e distante do que se podia supor.
Não raro foram os esquerdistas que sonharam que Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho seria a consagração política do Partido dos Trabalhadores. Muito pensamento desejoso se fez a respeito disso, erroneamente classificando o "médium" Francisco Cândido Xavier como suposta alma-gêmea do sindicalista Luís Inácio Lula da Silva, a partir de simbologias que não eram mais que ideias soltas, superficiais e fantasiosas.
A ideia de "vida futura" era difundida de maneira tão confusa que a "cidade espiritual" de Nosso Lar, uma espécie de analogia sobrenatural à que hoje é a Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro, foi equivocadamente creditada como "comunidade socialista", sem que os esquerdistas percebessem os conceitos conservadores de meritocracia e hierarquização social defendidos pelo livro que leva o nome dessa "comunidade astral".
Abrindo mão da habitual racionalidade que, de forma brilhante, apontava os descaminhos da mídia hegemônica, as esquerdas passaram a cultuar Chico Xavier sem ter a exata ideia de suas ideias, que sempre foram de um conservadorismo bastante rígido. Os esquerdistas se deixaram levar pelo disse-me-disse e achavam que Chico Xavier era "progressista", ignorando que ele sempre defendia a Teologia do Sofrimento (que fazia apologia à desgraça humana) e manifestou um anti-esquerdismo bastante convicto.
E esse anti-esquerdismo era expresso em várias ocasiões. Chico Xavier defendeu o golpe de 1964, apoiou a ditadura militar quando parte da direita havia passado para a oposição, e, no período democrático, sempre manifestou aversão ao PT e a Lula, por quem manifestou pavor antes mesmo da atriz Regina Duarte, hoje apoiadora do governo Jair Bolsonaro.
Evidentemente, a própria grande mídia montava um discurso em que fenômenos supostamente associados ao "extremamente popular" fossem considerados progressistas. As esquerdas recentes foram educadas sob o monopólio midiático e, mesmo para elas, era surpresa que abordagens que apontavam o "funk" e o "espiritismo" como fenômenos conservadores lhes viessem à tona.
Desse modo, um erro de abordagem entre tempo e espaço desnorteou os esquerdistas, que acharam que "médiuns espíritas" e funkeiros estavam "realmente" ao seu lado. Achavam que o suplício das favelas era algo provisório e, num futuro próximo, as "favelas" virariam, por si só, bairros dignos, sem que uma reforma fosse feita, apenas colocando luz, encanamento e antenas parabólicas. Ignoraram que a ideologia funkeira não queria a ruptura real com a pobreza, tanto que não apreciava, por exemplo, as melhorias na Educação pública.
No caso do "espiritismo", a ideia de "vida futura" também não é algo próximo, pois o moralismo "espírita" sempre pregava a bonança numa etapa tardia da vida - a velhice, quando a pessoa já perdeu as forças que tinha para usufruir os desejos da juventude - , isso quando não é a vida após a morte ou a reencarnação. E, para piorar, o próprio Chico Xavier pregava que as "bênçãos divinas" eram novos sacrifícios humanos. Como as esquerdas puderam se iludir com um conservadorismo desses?
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