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Onda dos "médiuns que erram" vai contra os ensinamentos de Allan Kardec


A onda dos "médiuns que erram" é uma falácia que leva ao exagero uma passagem de O Livro dos Médiuns, a respeito da ideia dos "médiuns imperfeitos" que a obra de Allan Kardec alertou, mas que é usada de maneira leviana pelos brasileiros que dizem apreciar o Espiritismo.

Segue então o que foi dito no Capítulo 20 - Influência Moral dos Médiuns, itens 9 e 10:

9. Qual seria o médium que poderíamos considerar perfeito?

— Perfeito? É pena, mas bem sabes que não há perfeição sobre a Terra. Se não fosse assim, não estarias nela. Digamos antes bom médium, e já é muito, pois são raros. O médium perfeito seria aquele que os maus Espíritos jamais ousassem fazer uma tentativa de enganar. O melhor é o que, simpatizando com os bons Espíritos, tem sido enganado menos vezes.


10. Se ele simpatiza apenas com os bons Espíritos, como estes permitem que seja enganado?

 — Os Espíritos bons permitem que os melhores médiuns sejam às vezes enganados, para que exercitem o seu julgamento e aprendam a discernir o verdadeiro do falso. Além disso, por melhor que seja um médium, jamais é tão perfeito que não tenha um lado fraco, pelo qual possa ser atacado. Isso deve servir-lhe de lição. As comunicações falsas que recebe de quando em quando são advertências para evitar que se julgue infalível e se torne orgulhoso. Porque o médium que recebe as mais notáveis comunicações não pode se vangloriar mais do que o tocador de realejo, que basta virar a manivela do seu instrumento para obter belas árias.

O caso de Francisco Cândido Xavier é uma aberração que apenas utiliza levianamente algumas dessas observações: "imperfeição do médium", "não vangloriar mais do que o tocador de realejo" etc. O grande problema de Chico Xavier é esse, errar demais e fingir autocrítica, se vangloriar e se passar por humilde. Ele sempre foi marcado pela dissimulação, pelo jogo das aparências.

"LÁPIS DE DEUS" É ATRIBUIÇÃO QUE NÃO EXPRESSA HUMILDADE, MAS PRESUNÇÃO

Vejamos. Ele se dizia o "carteiro de Deus", o "lápis de Deus", e esse discurso deveria ser observado com cautela. Diante do que as pessoas acreditam serem as atribuições de Deus - que Kardec definiu não na forma antropomorfizada, mas como "causa primária de todas as coisas" - , nota-se que a declaração de Chico Xavier nada tem de humildade alguma, antes fosse uma forma de se vangloriar pela falsa modéstia.

Afinal, a ideia é que Deus "teria" em Chico Xavier seu mensageiro principal, como uma espécie de divinização por tabela. Deus "escreveria" através de Chico Xavier e, portanto, essas atribuições de suposta humildade são na verdade "carteiradas religiosas", de muita presunção.

E isso quando sabemos que o "lápis de Deus" chegou a comparecer a homenagens da ditadura militar, dentro da sua ambição de ser famoso, não ser perseguido - e era blindado até demais pela sociedade brasileira - e, em que pese a imagem (falsa) de "indiscutível humildade e renúncia material", viajava e era hospedado com muitíssimo conforto e acumulou para si as recompensas terrenas que o prestígio religioso, que neste caso fez um arrivista virar "semi-deus", alvo de obsessiva adoração pública.

A DIFERENÇA ENTRE COMPREENDER UM ERRO LEVE E NORMALIZAR UM ERRO GRAVE

O que está em jogo é que os "médiuns", nessa atual atribuição de "errantes" e "imperfeitos", lembram aquelas pessoas que caem de propósito achando que outras pessoas irão lhe acudi-lo. Lembram o jogador arrogante de futebol que, ao receber uma "fechada" de um rival que lhe roubou a bola, simula uma queda para pedir um pênalti a seu favor.

"Médiuns" como Chico Xavier produziram escândalos gravíssimos. O livro Parnaso de Além-Túmulo é uma aberração tao fraudulenta, que a obra recebeu cinco reparos editoriais em 23 anos, algo que é muito estranho para uma obra "trazida por benfeitores espirituais", na qual se supõe que é desnecessário mexer em um documento considerado "sublime".

O mais preocupante é que a denúncia foi trazida, sem querer, por uma pessoa solidária a Chico Xavier, a também "médium" Suely Caldas Schubert, que publicou uma carta de 03 de maio de 1947 em que o dito "lápis de Deus" enviou a Antônio Wantuil de Freitas, presidente da "Federação Espírita Brasileira", agradecendo a este e ao editor "dr. Porto Carreiro" (Luís da Costa Porto Carreiro Neto) pelas revisões dos manuscritos de Chico Xavier para a sexta edição de Parnaso de Além-Túmulo.

Os erros são muito graves. Incluem usurpação dos nomes dos mortos, em obras que claramente fogem dos seus estilos originais, apesar de haver semelhanças eventuais (em muitos casos, raras ou caricaturais). Incluem, também, apoio a fraudes de materialização, inclusive com Chico Xavier assinando atestados de falsa autenticação.

Não se pode naturalizar erros assim sob a desculpa de que "todo mundo erra". É essa perspectiva, por exemplo, que fez muitos brasileiros votarem em Jair Bolsonaro. Devemos diferir o que é um erro sem gravidade, que merece compreensão, do erro grave que o privilégio social acoberta, mas que causa danos muito grandes.

Além disso, a literatura kardeciana é muito explícita ao recomendar que se considerem "bons médiuns" os que menos têm risco de enganar e serem enganados, o que significa que, em outras palavras, ele deva ter cometido menos erros possíveis.

Isso não se relaciona com Chico Xavier, cujos erros graves foram postos debaixo do tapete, em benefício de uma narrativa, com tons de fantasia e idealização, que promove a falsa imagem de "sujeito humilde que dedicou sua vida somente aos pobres". Isso tudo é uma falácia sem tamanho, porque nem caridade Chico Xavier fez, pois o que ele havia feito se equipara a quadros tendenciosos como os do Caldeirão do Huck (lembremos que Luciano Huck é fã confesso de Chico Xavier).

E se o prestígio religioso tornou-se moeda para "atenuar", pelas conveniências, os erros humanos, isso se torna ainda mais grave, porque isso consiste numa carteirada na qual se usa o "vínculo com Deus" para se livrar de responsabilidades duras, relacionadas a erros graves e preocupantes.

Dessa maneira, conclui-se que a onda dos "médiuns que erram" vai contra os ensinamentos de Allan Kardec, porque, embora este tenha afirmado da realidade dos "médiuns imperfeitos", isso não quer dizer que se faça um alarde muito grande e espalhafatoso, como se faz no Brasil, que se encaixa bem com o quadro de confusões do governo Bolsonaro, cheio de "gentes que erram muito".

O ato de errar virou uma espécie de estranha vaidade, e da forma como as pessoas falam "todo mundo erra", "todo mundo é gente como a gente", cabe desconfiar, e muito, porque o erro humano deixou de ser um ato acidental para ser a "receita do sucesso" e um "motivo de orgulho". Desse modo, os "médiuns que erram" se inserem num contexto de envaidecimento mal-disfarçado que o pedagogo de Lyon veria como um sério abuso.

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